"Gérard Depardieu já é cidadão russo. Foi recebido pelo próprio Vladimir Putin, depois de polêmica feia com o governo de François Hollande.
Eis a questão: Depardieu está cansado de pagar impostos. Durante a sua longa carreira, já pagou mais de € 145 milhões (cerca de R$ 384 milhões). Chega. Sobretudo quando o governo de Hollande promete taxar com redobrada dureza os mais ricos do país.
Comento essa história com alguns amigos progressistas que não se conformam: se o Estado francês deseja aumentar para 75% o Imposto de Renda de quem ganha mais de € 1 milhão (R$ 2,6 milhões), como é possível que Depardieu se recuse a contribuir?
Claro que o verbo, na minha opinião, não é "contribuir". É "permitir". No caso, "permitir" ser roubado pelo Estado. Mas o problema, no fundo, é outro: quando Depardieu diz adeus à França e aceita um passaporte de Putin, talvez seja a França, e não Depardieu, que esteja com problemas sérios.
Aliás, bastaria perguntar aos meus amigos progressistas quando estiveram eles em Paris pela última vez. O silêncio seria geral. Paris é uma cidade que já não existe no radar deles.
Sem falar do óbvio: qual foi o último romancista francês que eles leram em 2012? Qual foi o filme a que assistiram? Que exposição os motivou ou encantou?
E, filosoficamente falando, quem é o grande pensador francês da atualidade? Melhor ainda: seriam eles capazes de ler esse pensador na língua original?
"É a economia, estúpido!", dizia um conhecido marqueteiro americano nas eleições presidenciais de 1992 entre Clinton e Bush (pai). No caso da França, a economia é apenas o começo do problema.
E esse começo é o mesmo dos países do sul da Europa: o euro, uma quase imposição gaulesa para que a União Europeia engolisse a temível reunificação da Alemanha, permitiu à França uma década de endividamento e gastos públicos como se não existisse amanhã.
Os resultados, que a revista "The Economist" resumiu recentemente, arrepiam qualquer cristão: o Estado consome 57% do PIB (a maior fatia de toda a zona do euro). A dívida pública saltou dos 22% do PIB (em 1981) para os 90% (em 2012). O desemprego atinge 25% da população jovem.
Perante tudo isso, a solução de François Hollande é taxar tudo que se mexe: trabalho, capitais, patrimônio. E depois? Quando não existir mais nada nem ninguém para "contribuir"?
Depois, a França chegará a duas conclusões dolorosas.
A primeira é que, ao adiar as reformas necessárias para que a sua economia seja minimamente competitiva, Paris capitulou perante a Alemanha: Angela Merkel é hoje a líder informal da Europa, não François Hollande.
E, segunda, que há um cheiro de declínio no território preferencial dos franceses: o da cultura.
Anos atrás, a revista "Time" provocou polêmica ao cartografar esse declínio com números. Na França, publica-se muito -mas os livros não sobrevivem fora das fronteiras francesas. Na França, filma-se muito -mas os filmes também não sobrevivem fora do país.
O mais celebrado artista plástico francês -Robert Combas- é personagem secundário nos circuitos artísticos internacionais (que estão em Londres, Nova York e até Berlim). A cultura pop francesa é uma piada (ou, no limite, uma imitação grotesca dos rappers americanos).
Se não fossem moda e gastronomia, que só com muita benevolência podem ser consideradas "alta cultura", o que seria da França, hoje?
Formulo essa questão e o leitor, conhecendo a minha costela anglófila, imagina um riso perverso.
Imagina mal. Em 2012, o melhor livro que li foi francês ("O Mapa e o Território", de Michel Houellebecq). Em 2012, o melhor filme a que assisti foi uma produção parcialmente francesa ("Amour", de Michael Haneke). E, para ficar na filosofia, o melhor tratado de política que li no ano findo também foi francês (uma história do liberalismo de Pierre Manent).
Só que tudo isso são exceções que só confirmam o meu desgosto: eu gostaria de ter mais França, e não menos, nas estantes de minha casa. Isso só não é possível porque o declínio é real.
Sem enfrentar esse declínio, os meus amigos progressistas podem encontrar em Gérard Depardieu o bode expiatório. Infelizmente, não será o bode a ressuscitar o rebanho".
JOÃO PEREIRA COUTINHO
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