dezembro 26, 2012

O portão ( Ledo Ivo)


O portão fica aberto o dia inteiro mas à noite eu mesmo vou fechá-lo. 
Não espero nenhum visitante noturno
a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos. 
A noite é tão silenciosa que me faz escutar 
o nascimento dos mananciais nas florestas. 
Minha cama branca como a via-láctea 
é breve para mim na noite negra.
Ocupo todo o espaço da mundo. Minha mão desatenta
derruba uma estrela e enxota um morcego. 
O bater de meu coração intriga as corujas 
que, nos ramos dos cedros, ruminam o enigma 
do dia e da noite paridos pelas águas. 
No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo. 
Sou o vento que apalpa as alcachofras 
e enferruja os arreios pendurados no estábulo. 
Sou a formiga que, guiada pelas constelações, 
respira os perfumes da terra e do oceano. 
Um homem que sonha é tudo o que não é: 
o mar que os navios avariaram, 
o silvo negro do trem entre fogueiras, 
a mancha que escurece o tambor de querosene.
Se antes de dormir fecho o meu portão
no sonho ele se abre. E quem não veio de dia
pisando as folhas secas dos eucaliptos 
vem de noite e conhece o caminho, igual aos mortos 
que todavia jamais vieram, mas sabem onde estou 
— coberto por uma mortalha, como todos os que sonham
e se agitam na escuridão, e gritam as palavras
que fugiram do dicionário e foram respirar o ar da noite que cheira a jasmim
e ao doce esterco fermentado. 
os visitantes indesejáveis atravessam as portas trancadas 
e as persianas que filtram a passagem da brisa e me rodeiam.
Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha o portão da noite. 
Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir sozinho 
protegido pelo arame farpado que cerca as minhas terras
e pelos meus cães que sonham de olhos abertos. 
À noite, uma simples aragem destrói os muros dos homens.
Embora o meu portão vá amanhecer fechado
sei que alguém o abriu, no silêncio da noite, 
e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.

(in "A noite misteriosa")


Nota : Leia aqui e mais

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