agosto 15, 2012

Memória de sabores

"Tem gente que quer saber como comecei a gostar de cozinha. E respondo que foi quando me casei e não sabia cozinhar. Mas, será? Assim, de repente? Acho que deve ter sido o resultado de um longo tempo, passo a passo.
Lembro dos pitos que levei, e talvez de uma palmada, por ter comido as cerejas em compota da cesta do Natal antes do Natal. Das balas de goma que comprei no boteco do seu Salvador, que paguei uma por uma e que ele, assim mesmo, cobrou de novo na caderneta.
Não me lembro de espaços, tempo, casas, lugares, cadeiras, mesas. Mas de comida...
Das alcachofras da vizinha, fritas com farinha de rosca, da primeira Coca-Cola, do cheiro de leite Ninho e maçã ralada, no Rio, casa da minha avó. Da garrafa de Grapette.
Das empadinhas de camarão e do frango assado da minha mãe. Ah, e do frango ensopado com quiabo. Da berinjela recheada de Iracema.
Dos tatuís da praia do Leme, em risoto, coisa que jamais pediria em um restaurante, mas que catados por mim e pelo primo viravam comida dos céus. De uma maionese feita por uma tia que resolveu cozinhar salsichas, tirar as peles e usar a "carninha" de dentro para combinar com a batata e a maionese.
O músculo muito cozido do cachorro, puxando fio por fio, muito mais apetitoso do que o chuchu com passas da minha tia chique.
No reino da literatura, sobrou Emília em "A Chave do Tamanho", montada numa batata enorme como uma montanha, escavando aos poucos. E Juca e Chico, santo Deus, jamais se encontrarão meninos mais gulosos. E quem poderia se esquecer dos galos de ponta-cabeça no varal, galos da viúva Chaves que também gostava de aves?
E a história que meu pai me contava diariamente para dormir, de três galinhas que fogem e se salvam da fome quando acham um saco de onde jorrava milho do amarelinho...
E minha mãe chegando do cinema. Ela dizia que ganhara uma cesta de uma formiga e contava cada detalhe das comidinhas mínimas, do ovo do tamanho de cabeça de alfinete... E, quando eu estava pronta para ganhar todo aquele piquenique, ela me surpreendia com um tombo na ponte em que tudo se fora embora. Primeiras frustrações.
E quando o santo tomava um gole de uísque eu ia até a garrafa e engolia com enorme desprazer uma colherinha de chá da bebida.
Um dos meus netos, quando pequeno, dividia o mundo em coisas que se podia comer e não comestíveis. "Craca em barco é de comer?" "Não." Ele perdia o interesse. "Ostra é de comer?" Até hoje vive pelo mundo procurando ostras.
O subconsciente é que vai tramando sua rede e a própria pessoa é que vai achando o significado da vida? Será? Outros dizem que a sua primeira história de fadas, ou melhor, sua história de fadas preferida, é que vai ser sua bússola na vida. Pode ser verdade, também.
Mas, cozinheiros, vocês se encantavam com uma bela manga dourada, gostavam de espremer bananinha-ouro e comer como um patê, adoravam um serão com pipoca, tinham indigestões homéricas em dia de festa, desenhavam cachos de uva na perfeição? Ahnnnnnn".

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