junho 13, 2012

Milena


"Início de semestre. Nas salas de aula era intenso o burburinho dos primeiros contatos de alunos e professores. Eu tentava minimizar minha ansiedade fazendo apresentações, entregando o programa da disciplina, dando informações sobre o conteúdo. Na saída, a silhueta franzina de uma menina de cabelos cacheados usando sapatos Moleca se aproximou de mim. Com voz meiga e suave me disse que o texto de Gramsci a ser discutido na próxima aula não se encontrava na pasta da xerox. Pensei um pouco e respondi que colocaria outra cópia na pasta no dia seguinte, pois a que tinha ali comigo estava em inglês. Ela me surpreendeu dizendo que não havia problema. Tiraria uma cópia e me entregaria o livro num instante. A menina era você, Milena, que me fez entender que naquele semestre eu teria uma aluna diferente, estimulante. 
Nas aulas você parecia mais curiosa, como se minha disciplina estivesse abrindo janelas na sua vida, arejando-lhe a mente, ensinando-lhe a ver o mundo com outros olhos. Seguia-me depois da aula, entrava comigo na sala, pedia-me explicações, olhava meus livros. Ao final sentava-se na espreguiçadeira e lia ou assistia aos vídeos com que eu ilustrava algum assunto. Seus traços de figura ímpar foram se desenhando dentro de mim. Apesar da diferença de idade entre nós e da separação de papéis, em pouco tempo você pegava carona comigo, fazia refeições no mesmo restaurante, frequentava minha casa, conhecia meu marido e se tornara presente aos encontros do meu círculo de amigos. Ocupávamos boa parte de nosso tempo em discutir, trocar livros, ir ao cinema e acima de tudo rir de tudo e de todos. Às vezes eu até ficava com sentimentos de culpa por expor minha vida e minha forma de pensar tão abertamente a alguém tão mais jovem do que eu. Pensei muitas vezes: de onde saiu essa menina que vive perto de mim, que me desafia, me provoca a estudar, ler e trocar experiências de igual para igual? (Que assanhada! Parece comigo!) Mas eu não esqueci que quando a conheci você usava sapatos Moleca. 
Você aproveitou muito bem seu tempo na UnB, sabe? Quando se desencantou do curso de violão, foi ampliar conhecimentos aprendendo fotografia e cinema no curso de comunicação. Como tinha especial talento para fazer contatos, observar e perceber pessoas, a cada dia fazia mais amizades. Em contraponto era fechada, pouco se deixava conhecer. Só quando tive contato com sua mãe vim a saber que havia sido menina precoce, entrado para o curso de direito com 17 anos e fora taquígrafa da Câmara dos Deputados do Acre. Nossas conversas me fizeram entender o quanto você era uma joia preciosa para seus pais. Além do violão, tocava um pouco de violino e de flauta doce, o que já lhe dava vantagens como aluna no curso. Nossa convivência tornou-se mais freqüente quando você me surpreendeu alugando um pequeno apartamento num bloco atrás do meu. Gostava muito de festas, baladas, paqueras, como qualquer moça de sua idade, mas continuávamos a conversar até altas horas, caídas de sono. Peculiarmente, você gostava de conhecer o mundo. Aparecia vindo da feira de Juazeiro ou de um festival em Curitiba, ia pra feira do Guará só pra comer tapioca com café e estava sempre disposta a uma nova programação. Nunca me esqueço de uma comemoração de seu aniversário em que fui levada ao Caribenho e terminei dançando forró e salsa com seus convidados. E ao jogo de sinuca nos sábados à noite, a que você insistia que eu fosse? A temporada em Planaltina para documentarmos a Festa do Divino? Convivendo ali com duas pesquisadoras, você mantinha na mochila seu sapato Moleca. 
Nunca a imaginei instrumentista, sabe? Seu senso crítico e sua racionalidade não a deixariam à vontade no palco. Você estaria melhor pensando a música do que a executando, e quando escolheu continuar os estudos de composição pensei estar mais alinhado o seu caminho. No fim do curso, um dia me disse que não estava disposta a ganhar salário de músico e faria concurso para o MRE. Pouco tempo depois, ganhou um apartamento igualzinho ao meu, num bloco mais perto de mim. E desapareceu! Perguntei-me onde estaria, se não queria mais conversas que a distanciassem dos novos objetivos. Sua presença em minha vida me fazia sentir sua falta, mas eu compreendia que você estava procurando seu lugar no mundo, que já tinha mudado muitas vezes e que um dia encontraria seu verdadeiro caminho. Depois apareceu contando que tinha arranjado um namorado e rompido com ele. Na conversa, eu lhe falei que para manter um namoro era preciso ser boazinha. Você pode não se lembrar do que me disse, “mas eu sou boazinha, sim” foi o que me respondeu! Virei a cabeça, dei um muxoxo e vi que seus sapatos continuavam os mesmos. 
Apesar da mudança radical na rotina, seu trabalho no MRE não nos afastou. Fiquei sabendo dos novos contatos, das viagens a terras distantes, dos novos interesses, mas aqui, acolá, eu era surpreendida. Recentemente você me pediu uma cópia do filme do Malick e outra do Von Trier. Atravessaria o oceano e, quando chegasse, gostaria de assistir. Na hora, pensei: que será que ainda quer essa menina? Virou mulher e continua por perto, me instigando, me forçando a aprender, a sentir que faz parte de minha vida? Só não me confidenciou, Milena, que voltaria nas asas de um mosquito 121. Essa sua aventura foi o que se pode chamar de autêntica molecagem, principalmente porque só me restou a melancolia de ver os filmes feito uma grande árvore: sozinha! 

Mércia Pinto. 
Janeiro de 2012.

Nota:   Milena faleceu em 26 dezembro 2011

2 comentários:

Anônimo disse...

Que lindo esse texto !!!! Que homenagem preciosa....!!!!

Anônimo disse...

Sorry por Milena