abril 19, 2012

VENEZA: AS ÁGUAS VÃO ROLAR


Promessa é divida: eis-me em Veneza, arvorado em gondoleiro, para lhes contar como foi e como não foi. Pensando bem, como não foi me abstenho de contar, pois não saberia começar. Sorte de principiante (sou um principiante existencial, nunca aprendendo com os meus erros): a minha estada coincidiu com os 400 anos da morte de Tintoretto. Na minha singela opinião de sumidade versátil, o maior pintor veneziano de sempre, passando o rodo em Ticiano, Bellini e Tiepolo. E mais veneziano impossível: “Só em Veneza vivi, só Veneza quis conhecer.” 
A cidade transfigurou-se numa baita galeria, num percurso em 16 etapas pela obra do artista, que consome 3 dias para ser desossado até à última cartilagem. Ninguém precisa tirar o pai da forca, pois na Itália os horários dos museus e igrejas são elásticos, apesar da proverbial pausa de 4 horas para o almoço (que, para sermos exatos, deveria se chamar à massa).
O túmulo do pintor fica numa das capelas da igreja da Madonna dell’Oro, onde pode ser lido o seu testamento deixando tudo para seu filho Domenico. Da ilha de San Giorno, cuja igreja é a sétima no percurso, podemos nos embasbacar com a prodigiosa silhueta veneziana – seus campanários de tijolos, janelas mouriscas, terraços de madeira, chaminés cônicas. Aqui, o tempo pôs tudo em ponto morto. Ou melhor: apenas se aninhou numa chaise-longue, para ver a eterna banda passar eternamente. Pela madrugada! E eu que achava o Rio incomparável. Já não está mais aqui quem babou ovo.
Os venezianos são italianíssimos, mas devagar com o andor. Ficam enjoados e vomitam as tripas sempre que entram num avião ou automóvel. Têm a insularidade no sistema linfático. Exprimem-se num dialeto que é chinês para os outros habitantes da bota.
Deixemos Tintoretto no tinteiro. Reguemos as nossas amigdalas com umas cisternas de chiantti. É hora de errar pelos labirintos de Veneza (aqui, mais do que nunca errar é humano – então eu jogo em casa). Perco-me por esses dédalos emaranhados, e deixo-me invadir por ruminações metafísicas – bem bocós, por sinal (do tipo (donde viemos, para onde vamos). Aliás, na altura em que meditava “para onde vamos”, tive de perguntar a um transeunte onde é que eu estava.
O anoitecer veneziano apazigua a besta-fera que há em nós, com o seu céu ocre e magenta. Não me espanta que o florentino Michelangelo tem se inspirado nessa abóbada para pintar a Capela Sistina. Ao transpor a Ponte dos Suspiros, não pensei nem em Casanova nem nos condenados que aqui gemeram, mas naquela que aplicou um band-aid no meu coração. Bem feito: ao pensar nela, penso no mouro de Veneza e nos seus ciúmes doentios, e anseio por trocar o band-aid por uma compressa.
E o Grande Canal? Contemplo a sua corrente e reflito: Um rio é um caminho que anda (porra, não tenho onde anotar a frase, o que significa que terei de murmurá-la incessantemente pela próxima meio hora, pelo menos). Se cheira mal? Oh, não cheira pior que a meia de um maratonista após a prova.
Sinto uma tal beatitude que começo a pensar que numa encarnação anterior fui um Doge. Ainda ontem, um veneziano de gema me contou que uma cartomante profetizou que ele corria sério risco de morrer atropelado. Exclamou: “Minha senhora, vivo na única cidade do mundo em que é impossível ser atropelado!” 
Dizem que Veneza foi fundada no dia 24 de março de 413, alheia ao Império Romano. Outros juram que aquela informação foi prestada no dia 1 de abril. Que se dane. É um planisfério de 177 canais, 400 pontes e 118 ilhas. No século XX, um aterro permitiu uma ligação ao continente, a construção do terminal ferroviário de ferro Venezia Santa Luzia (onde Angelina Jolie desembarca como Afrodite da sua concha em O Turista) e uma estrada para automóveis e um estacionamento. OK, Truman Capote achava-a enjoativa: “Veneza é como comer uma caixa de bombons de uma só vez.” Mas Capote não entendia patavina de mulheres – e, com todas os seus esplendores tortuosos, a República Sereníssima é forçosamente feminina. Claro que o monograma indefectível de Veneza é a sua natureza anfíbia. Consta que nos anos 60 o humorista americano Robert Bencheley esteve aqui. Assim que chegou ao hotel, despachou um telegrama histérico para o seu mentor: “Ruas inundadas! Aguardo instruções!
A Ópera ribomba no La Fenice (A Fênix), que o fogo consumiu várias vezes, e que ninguém inflamou tanto como Callas – foi lá que ela nasceu artisticamente, no ano de 1947. Imagino-a flanando pelo Lido ao lado de Luchino Visconti, enquanto este devaneava com Tadzo, o efebo querubínico que mais tarde filmaria na sua adaptação desse bom e velho enrustido que foi Thomas Mann. Da janela do Danielli (para mim muito mais classudo do que o Hotel des Bains, onde Visconti rodou Morte em Veneza) , avisto a igreja de San Giorgio, a um minuto de vaporetto. Se o Céu existe, o arquiteto que a construiu tem uma suíte presidencial nos Campos Elíseos com vista para o mar. 
No cemitério de San Michelle, tiro um chapéu mental para Ezra Pound, Stravinski (grafado com W), Wagner e Diaghlev, todos enterrados ali. Sem eles, a arte de hoje seria de ontem. Em 19 de Maio de 1913 (quase sem anos, se os meus dedos não me enganam), Stravinski e Diaghlev revolveram Paris com A Sagração da Primavera (Le Sacre du Printemps), que um crítico implicante chamou de Le Massacre du Printemps. Enquanto observo distraidamente o túmulo de Pound, me recordo de uma evocação de alguém: “Lembro de apenas uma coisa sobre Pound. Ele usava barba e parecia falsa.”
Resumindo e concluindo: dizem que os americanos bons quando morrem vão para Paris. Faço figas para que os Paulos Nogueiras bons vão para Veneza (mas não é preciso empurrar). 

Do blog Transatlantico Paulo Nogueira

2 comentários:

Anônimo disse...

Ufa! que texto!
abr
Lalá

Anônimo disse...

Ufa! que texto!
abr
Lalá