março 17, 2012

Freud explica - Luto e Melancolia

"Uma das inovações de Freud encontra-se na sua maneira de repensar as relações entre normalidade e patologia. Freud dizia que um cristal, quando se quebra, respeita os sulcos que existiam antes, mas que eram invisíveis ao olho humano. Assim, se quisermos entender a estrutura do cristal, devemos partir de seu estado quebrado.
Da mesma forma, se quisermos entender a estrutura da normalidade, devemos partir deste no qual a normalidade se quebra. Nada do que é patológico nos é estranho, pois ele diz em voz alta o que sentimos em silêncio.
Poucos são os textos de Freud em que vemos esse pressuposto em operação com tanta radicalidade quanto em "Luto e Melancolia".
A nova edição da tradução (a primeira digna desse nome em língua portuguesa) de Marilene Carone (1942-1987), traz dois belos estudos escritos por Maria Rita Kehl* e Urania Tourinho, além de uma introdução à tradução.
Um dos méritos do texto está em sua capacidade de inserir a etiologia da melancolia no interior de uma reflexão mais ampla sobre as relações amorosas.
Freud sabe que o amor não é apenas o nome que damos para uma escolha afetiva de objeto. Ele é a base dos processos de formação da identidade subjetiva. Esta é uma maneira de dizer que as verdadeiras relações amorosas colocam em circulação dinâmicas de formação da identidade, já que tais relações fornecem o modelo elementar de laços sociais capazes de socializar o desejo.
Isto talvez explique por que Freud aproxima luto e melancolia a fim de lembrar que se tratam de duas modalidades de perda de objeto amado.
Um objeto de amor foi perdido e nada parece poder substituí-lo. No entanto, o melancólico mostraria algo ausente no luto: o rebaixamento brutal do sentimento de autoestima. Como se, na melancolia, uma parte do Eu se voltasse contra si próprio, através de autorrecriminações e acusações.
A tese fundamental de Freud consiste em dizer que ocorreu, na verdade, uma identificação do Eu com o objeto abandonado de amor.
Tudo se passa como se a sombra desse objeto fosse internalizada, como se a melancolia fosse a continuação desesperada de um amor que não pode lidar com a situação da perda.
Incapacidade vinda do fato de a perda do objeto que amo colocar em questão o próprio fundamento da minha identidade. Mais fácil mostrar que a voz do objeto ainda permanece em mim, isto através da autoacusação patológica contra aquilo que, em mim, parece ter fracassado.
Essa é uma maneira de dizer que a melancolia é o cristal quebrado que nos mostra a natureza radicalmente relacional de nossas identidades. Conhecer tal natureza sempre foi a melhor forma de lidar com seus desafios.
VLADIMIR SAFATLE
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