fevereiro 14, 2012

O cotidiano também faz história

"Dos relatos de história - grandes navegações, guerras, novas descobertas- chegamos, hoje, ao uso da mesma palavra para anotar não mais grandiloquências, mas pormenores do dia a dia.
Fico contente quando me caem nas mãos livros que tratam de insignificâncias. Como a história da alcachofra, por exemplo. Essa planta foi se modificando Mediterrâneo afora, passando por banquetes de casas reais, como conta o recém-lançado entre nós "A Fabulosa História dos Legumes". Nele, a autora, Évelyne Bloch-Dano, deixa de se referir às pessoas que os trouxeram e levaram e se atém à origem e à diáspora dos próprios vegetais.
Um dia, a batata chegou à Europa, vinda da América recém-descoberta, o que revolucionou a culinária.
Hoje, o ritmo da introdução e da apropriação de elementos de outra cultura é muito mais rápido. Hábitos e costumes vão e vêm de avião, por telefone e por outros tantos recursos de comunicação, modificando o cotidiano.
Mas a gente se defende, por apego às tradições. Podemos até achar massa folhada uma delícia, mas não aposentamos o nosso "romeu e julieta" (queijo com goiabada), pelo menos não de repente.
Outro livro, o incrível "A Lebre com Olhos de Âmbar", também recém-lançado no Brasil, relata as mudanças dos pormenores cotidianos entre membros de uma família que o destino espalhou entre Viena e Tóquio. O autor, Edmund de Waal, vai descrevendo da diáspora da família até o reencontro, anos depois.
A literatura invadiu o cotidiano. Quando Proust leva dez páginas contando a angústia dele esperando a mãe vir dar o beijo de boa noite, muda-se o enfoque: o fundo passa a ser figura.
Estamos no centro do viver há mais de cem anos numa família burguesa.
Cada família nuclear talha, como uma escultura feita no dia a dia, o seu jeito de ser. É o homem comum tentando criar uma identidade a partir de seus próprios hábitos.
Pode-se argumentar que sempre foi assim. A diferença é que hoje a transmissão, além de ser oral, é também artística. Está na literatura.
E assim nós descrevemos. Hoje se escreve sobre os escaninhos nada secretos do cotidiano da família nuclear, que não quer ser igual à família vizinha. É a formação de parte importante da identidade, nossa existência, à qual cada um de nós se apega.
A história da vida privada é a vitória do cotidiano como modelador do jeito de ser de cada um e de cada família".
ANNA VERONICA MAUTNER

Nota:  Leia    aqui   " Histórias de gostos” ou a gênese da Universidade Popular do Gosto de Argentan (França) a propósito do trabalho da autora do ensaio  Évelyne Bloch-Dano. A autora  recorre a uma série de disciplinas como literatura, artes, música, história, genética e horticultura - além de pinturas e poemas, incluídos no livro - para mostrar que o legume dispõe de uma aura simbólica maior do que seu mero valor calórico ou de mercado. . “O legume mais modesto contém em si a aventura do mundo”, diz o filósofo Michel Onfray no prefácio de A Fabulosa História dos Legumes. ( mais)

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