fevereiro 19, 2012

‎"Correspondência Amorosa"

"Meu velho e querido Rainer, – saiba você, chorei terrivelmente lendo sua carta, que estava ridícula, mas nós podemos, às vezes, impedirmo-nos de ver a vida acolher desta maneira os mais preciosos de seus filhos. Eu o acompanhava com todos os meus pensamentos – se é que se pode chamar isto “acompanhar”, quando nos perguntamos a cada dia onde se pode encontrar alguém: se este subiu para as alturas até os confins da humana atmosfera, ou se caiu no fundo de uma cratera, debatendo-se entre os mil fogos que nunca queimaram no seio da terra. Quando você me escrevia a respeito de minhas “Cartas”, com toda espécie de “s” tornando-as alegremente loucas, parecia-me concebível que um período produtivo tivesse lhe invadido, provocado por alguma experiência afetiva; e é sempre este o momento em que um terrível perigo parece tão próximo quanto uma grande vitória. É fácil então, para certas almas, sacrificar um nada de produtividade que lhe viesse a favor de uma experiência fortemente vivida; e, em certas ocasiões, outras, criadoras por natureza, conseguissem fazer o inverso; mas acontece que muito mais freqüentemente, sem dúvida, as duas tendências se encontram na metade do caminho e morrem por estarem mutuamente destruindo a estrada. Mas – embora desta vez você seja o único responsável por esta morte, pois você não tem motivos para desculpas, nem álibis – uma coisa entretanto fica fora de dúvidas: a maneira como você ressuscita isto em suas palavras é exatamente, oh! é exatamente a antiga, a íntegra potência que dá vida àquele que está morto – e, além do mais: o luto provocado pelo acontecimento é aquele de uma alma cujo sentimento mais sutil, mais interior, em nada saberia ser mais inocente do que te acusas.....
....E, no entanto, é você mesmo – como é você também que em um momento qualquer é incapaz de trabalhar ou o faz negligentemente. E certamente você não tira nada, e nem pode tirar, do fato de que este, apesar de tudo, não é você, pois não saberíamos nos alimentar do pão fechado em um armário, não mais que nos nutrimos da espera dos grãos do trigo a colher nos campos. É porque, se padeci por este motivo, eu padeceria novamente como uma outra espectadora, que ao mesmo tempo fica comovida com o pensamento de que o pão e os frutos do campo existem. Eis o que resta agora sob o “vidro duro e frio da vitrine”; você não o possui, e o vidro reflete a você mesmo. Portanto, estava aí uma prova da grandeza de suas propriedades, e como você quase não as conhecia sob este aspecto – sua profundidade, sua riqueza, – do mesmo modo elas ainda têm a lhe oferecer outras, das quais você não poderia, mesmo hoje, suspeitar, e das quais qualquer coisa muito mais fina que o vidro lhe encobre a visão. Mas para que servem todas estas palavras? No momento você nada experimentará de diferente, se isto é apenas algo de fino ou denso que lhe separa da vida, e toda palavra contrária é estúpida, tola e impotente".
Lou Andréas-Salomé

Munique, 8 de junho de 1897 Terça- feira
"As flores dos campos que trouxe há uma semana de uma manhã maravilhosa há muito estão deitadas entre as grandes folhas de um terno mata-borrão; mas nesta hora em que as contemplo, sorriem-me como uma recordação cheia de graça esforçando-se por parecer alegres como outrora.- Foi uma dessas horas singulares. Horas que são como o coração de uma ilha cingida por densas florescências: para além destas muralhas primaveris, as ondas respiram quase imperceptivelmente, e não se avista um único barco que venha do passado distante, nem um só que queira continuar para o futuro. O fato de se lhe dever seguir um regresso ao quotidiano não pode esbater estas horas insulares. — Elas permanecem à margem de todas as outras horas, como que vividas ao mais alto nível do ser. Este tipo de existência insular e mais elevada é a meus olhos o futuro de muito poucos.

Uma felicidade toca, floresce ao longe,
Alastra em volta da minha solidão
E procura tecer para os meus sonhos
Um enfeite de ouro.
E ainda que
A minha pobre vida esteja gelada de madrugada
Inquieta e neve dolorosa,
A hora santa virá para ela,
Um dia, da sagrada Primavera......

Desejaria estar já em Dorfen. A cidade é tão ruidosa, estranha. E, nos períodos de maturação interior, nada de estranho deve aflorar as nossas margens. Um dia, daqui a muitos anos, compreenderás completamente tudo o que és para mim. O que é a fonte da montanha para quem está sequioso. E se quem está sequioso é um homem íntegro e agradecido, não vai procurar frescura e força à sua claridade para voltar a partir para o novo sol; sob sua proteção e suficientemente perto para ouvir o seu canto, constrói uma cabana e permanece neste vale pacífico até que os olhos estejam cansados do sol e o seu coração transborde de riqueza e de compreensão. Eu construí cabanas e — permaneço. Minha límpida fonte! Como te estou agradecido. Não quero mais ver flores, céu, sol — a não ser em ti. Tudo é absolutamente mais belo, mais fabuloso, quando o olhas: a flor nas tuas margens, que — sei isso do tempo em que tinha de ver as coisas sem ti — treme de frio no musgo, solitária e terna, reflete-se clara na tua bondade, vibrante, e quase aflora com a sua pequena cabeça o céu que irradia da tua profundeza. E o raio de sol que chega empoeirado e único aos teus limites transfigura-se e multiplica-se em chuva de centelhas nas ondas luminosas da tua alma. Minha límpida fonte. É através de ti que quero ver o mundo, porque, ao mesmo tempo, verei, já não o mundo, mas apenas a ti, a ti, a ti! Tu és o meu dia de festa. Quando em sonhos me junto a ti, tenho sempre flores nos cabelos. Desejaria colocar-te flores nos cabelos. Quais? Nenhuma tem a simplicidade comovente que deveria, nenhuma é suficientemente simples. Em que Maio colhê-las? — Mas creio agora que tens sempre nos cabelos uma grinalda — ou uma coroa... Nunca te vi de outro modo.
Nunca te vi, que não tivesse o desejo de te rezar. Nunca te ouvi, que não tivesse o desejo de acreditar em ti. Nunca te esperei, sem o desejo de sofrer por ti. Nunca te desejei, sem ter também o direito de me ajoelhar à tua frente. Sou para ti como o bastão para o caminhante, mas sem te apoiara. Sou para ti como o cetro é para o rei, mas sem te enriquecer. Sou para ti como a última pequena estrela é para a noite, ainda que a noite mal a distinguisse e ignorasse a sua cintilação".
René - Rilke 
.....

"Permaneço no escuro como um cego
Porque meus olhos não te encontram mais
A faina turva dos dias para mim
não é mais que uma cortina que te dissimula.
Olho-a, esperando que se erga
esta cortina atrás da qual há minha vida
a substância e a própria lei da minha vida
e, apesar disso, minha morte.
Tu me abraçavas, não por desrazão
mas como a mão do oleiro contra o barro
A mão que tem poder de criação.
Ela sonhava de algum modo modelar –
depois se cansou,
se afrouxou
deixou-me cair e me quebrei.
Eras para mim a mais maternal das mulheres,
eras um amigo como são os homens,
eras, a te olhar, mulher realmente, mas também, muitas vezes, criança.
Eras o que conheci de mais terno
e mais duro com que tenho lutado.
Eras a altura que me abençoou –
te fizeste abismo e naufraguei".
Rilke para Lou-Salomé
Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé

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