dezembro 28, 2011

Maracangalha

"Somos de índole triste, sempre contando a história de alguma consulta médica a que se foi ontem ou de um atropelamento na vizinhança. Nada dá certo. Melancólicos pela própria natureza, adoramos puxar uma angústia e disputar o game para descobrir quem sofre mais. Minha mulher foi embora, meu gato morreu, tenho sentido umas dores aqui. Quando Eduardo Coutinho, no seu excepcional filme “As canções”, pergunta aos entrevistados as músicas que marcaram suas vidas, todos se lembram apenas das mais amargas. Somos vítimas da incompreensão alheia. Apenas uma alemã, que deixou a filosofia dos seus patrícios e virou professora de capoeira na Zona Sul, tenta esmurrar a pose de coitadinha abandonada. Levou um rabo de arraia da vida, o popular pé na bunda, mas escolheu como sua música um samba vingativo da Velha Guarda da Portela. A letra diz que ao abandono a vítima responderá com o castigo do desprezo, vai matar o crápula devagar. Foi a maneira que a alemã encontrou para se pôr de pé e filosofar em português.
Nada contra sofrer de amor, esse atropelamento inevitável na calçada da existência. Dependendo do dia, eu talvez até cantasse “O ébrio”, tocado pela dor furiosa do sujeito que na bebida busca esquecer aquela ingrata que se mandou. Música é um mistério. Nunca se sabe exatamente por que uma deixa marcas maiores que outras. Já pensei em coalhar os postes da cidade com reclames de alguma terapia que ajudasse a decifrar os males da alma através da observação do playlist de cada um. Nesse fim de ano, fazendo a lista dos planos para 2012, tenho amadurecido o projeto. De repente, quem sabe, breve num poste de esquina em Ipanema.
Diga-me a tua música e eu te direi quem és, poderia gritar o anúncio.
Canta que eu te escuto e te decifro.
Hoje, por exemplo, se eu estivesse caminhando pela rua e a produção do Eduardo Coutinho me perguntasse que música vai na minha vida, eu primeiro daria um drible na consciência e evitaria responder que era a insuportável “Ai, ai, assim você me mata”. Depois, eu responderia, sem mentir, “Maracangalha”.
É aquela em que o Dorival Caymmi vai para Maracangalha, que na minha fantasia imagino sempre ser um município vizinho à Pasárgada onde Manuel Bandeira teria na cama as mulheres que escolhesse. As outras cidades limítrofes são Xanadu e Eldorado. Maracangalha é o paraíso cercado de sorrisos e drinks de verão por todos os lados. Na música, Caymmi diz que está pronto, vai de liforme branco e chapéu de palha. Se a Anália quisesse ir, ótimo, senão, iria sozinho mesmo. O importante é ser feliz e mais nada, embora isso já seja outra música.
“Maracangalha” é uma daquelas brevíssimas letras do mestre baiano, meia dúzia de versos apenas, mas tudo sempre preciso e deflagrador de sabedorias. É o homem em busca do seu paraíso, espargindo o turíbulo da esperança como se fosse um GPS. Penso nela todo fim de ano, como um mantra que traz boas energias para a próxima temporada. Dá uma sensação de se pôr em movimento no encalço de uma rede para encostar o corpo cansado, dois braços à minha espera, uma muqueca para repor as energias e começar tudo de novo — mas desta vez sem estresse.
Eu chego à minha Maracangalha de liforme branco comprado na Richards e caminhando contra os ventos, embora isso me lembre que “Alegria, alegria” (“Por que não?!”) também seria uma boa música para se citar à turma do Eduardo Coutinho.
De qualquer maneira, diante da equipe do Eduardo Coutinho, eu estaria empenhado com os projetos de ano novo e nesses momentos instala-se automaticamente no tocadisco que me vai n’alma uma canção que anuncie tudo-vai-mudar. Eu talvez lembrasse de “Como será o amanhã”, aquela do “E a tristeza nem pode pensar em chegar”. Talvez fosse de Baden e Vinicius, repetiria “é melhor ser alegre que ser triste”.
Definitivamente, iria na contramão dos personagens do filme e deixaria a tristeza de lado. Ao contrário do posto no samba do Gil, ela não é Senhora coisa nenhuma. Daria uma de Flávio Cavalcanti. Quebraria essa tradição, a mania brasileira de repetir Noel Rosa e jactarse com a aura dessas palavras pedantes e a arrogância macambúzia do seu “Quem é que já sofreu mais do que eu?”
Acima de tudo, alegre ou triste, constataria, diante da pergunta que o Eduardo Coutinho não me fez, ter sido criado num tempo em que a vida das pessoas comuns aparecia nas letras dos grandes artistas. De que falam mesmo as músicas de hoje? Daqui a 20 anos, quando o documentarista da época perguntar sobre as músicas que narraram a vida de cada um, será que vamos precisar recorrer às velhas baladas de Roberto Carlos para cantar o que passou em nossas camas e nossos corações?
A canção acabou, o que é uma pena, mas um ano novo está vindo aí e eu continuo me socorrendo das que ouvi há muito tempo, como aquela da estrada que o Caetano traçou e vai dar no avarandado do amanhecer, uma estrada que vai dar no mar. A esperança é a prova dos nove; a alegria, o porto seguro para se atracar em 2012. São os meus votos, as músicas que mando daqui, todas vestidas de liforme branco, diretamente da felicidade futura de Maracangalha".
Joaquim Ferreira dos Santos

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