novembro 02, 2011

O visconde partido ao meio



"Com O visconde partido ao meio, lançado em 1952, Ítalo Calvino abandonou o neo-realismo dos primeiros livros e começou a explorar a fábula e o fantástico, elementos que marcariam profundamente a sua obra, pois recorre a elementos irreais para criar um ambiente de fábula em seu comprometimento com a realidade.
A obra veio compor com O cavaleiro inexistente e O barão nas árvores uma trilogia a que Ítalo Calvino (1923-85) chamou de Os nossos antepassados, uma espécie de árvore genealógica do homem contemporâneo, alienado, dividido, incompleto. 
Esta fábula de Calvino, foi escrita após a experiência da segunda guerra, no meio do século que nasceu sob a influência da psicanálise de Freud e em um mundo que a filosofia convencionou por chamar de “desencantado”, não poderia estar livre dos desígnios do tempo. Ao contrário do formato tradicional, cuja mensagem moral é explícita – muitas vezes até explicada separadamente, no final – o drama do Visconde di Terralba não traz a panacéia universal que cura os males dos homens em determinada situação e os orienta na conduta; apenas exprime, de maneira alegórica, a angústia do homem contemporâneo, “mutilado, incompleto, inimigo de si mesmo”, nas palavras do autor.
Assim, o primeiro impulso de leitura, o de situar as duas metades do Visconde no mesmo universo de interpretação de Jekill e Hyde (da obra O médico e o monstro), um bom, o outro mal, pode ser precipitado. Não é esse, segundo o próprio Calvino, o viés correto, pois essa duplicidade, mais que um fim da narrativa, foi apenas um meio, um artifício encontrado pelo ficcionista, para diferenciar os diferentes viscondes da trama. Fosse esse realmente o tema principal, poderia-se considerar infantil o resultado, de tão evidente e explícito o recurso escolhido para nos mostrar a duplicidade de caráter e de comportamento da personagem principal.
A semelhança com a novela de Stevenson existe, porém, em outros aspectos. A Inglaterra da segunda revolução industrial, com mudanças tecnológicas que refletiam social e economicamente na vida dos londrinos, está retratada em O Médico e o Monstro, e a beberagem que causa a separação de Jekill e Hyde é amostra de uma ciência que inebria, embora desconheça seus resultados. Em Terralba, o carpinteiro mestre Pedroprego vive um dilema moral. A pedido do malvado Visconde, constrói instrumentos de tortura e execução cada vez mais perfeitos, do ponto de vista da técnica, fechando os olhos para a utilização vil dos inventos. Nesse dilema, ecoa a proximidade de Calvino e da obra com a Segunda Guerra Mundial e o pioneiro uso de bombas atômicas, a ciência em sua melhor e pior forma.
A facilidade da escrita de Calvino, que faz com que O visconde partido ao meio se pareça com literatura infanto-juvenil, pode ser um exemplo desse aforismo. As personagens são quase transparentes, enxerga-se nelas seu papel na fábula, sem muitos espaços para interpretações diversas. Assim são os leprosos, hedonistas pois segregados, os huguenotes, sobrevivendo às adversidades graças a um rígido código de ética, o médico cientista Trelawney e o carpinteiro mestre. Nesse mesmo caminho, a linguagem não poderia ser hermética, tampouco rebuscada, pois isso trabalharia contra o resultado final, contra a fábula pretendida.
É nessa ambiguidade, a de ser simples sem ser simplório, ser profundo sem ser hermético, causar a reflexão sem ser enigmático, tratar da alma humana sem ser abstrato, que Calvino trabalha com desenvoltura. O enredo é simples mas os homens não o são, é o que nos diz, em momentos em que a prosa se torna poética, como nesse relato do narrador sobre o que sentia sobre os dois diferentes Viscondes di Terralba: os nossos sentimentos se tornavam incolores e obtusos, pois nos sentíamos como perdidos entre maldades e virtudes igualmente desumanas.
Como vimos, a fábula é a história de Medardo di Terralba, o voluntarioso visconde que, na defesa da cristandade contra os turcos, leva um tiro de canhão no peito, mas sobrevive, ficando absurdamente partido ao meio. A metade direita atormentada pela maldade, e a esquerda, pela bondade. Ainda bem que a bala de canhão dividiu-o apenas em dois, comentaram aliviadas suas vítimas.
Representa a condição lacerada do homem, dividido entre valores, sistemas políticos e sociais e entre oriente e ocidente. O livro O visconde partido ao meio é o conflito entre bom e mal, claro e escuro, e a fatídica e também clarificadora idéia de que sempre os dois extremos residem em nós mesmos. O conflito é sempre interno, nunca influenciado por fatores de fora. Quer-se lutar contra o mundo, quando na verdade necessita-se lutar consigo mesmo.
..."
Para ler a continuação link no título 

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