novembro 09, 2011

Essas mulheres e suas histórias

"Não é muito ofício. Procuro mulheres,no sentido literário da coisa. Gordas,magras, ricas ou pobres. Não importa. Mulheres reais que estejam dispostas a contar histórias de suas vidas cotidianas. Nada épico, nada que tenha mudado o curso da Humanidade, mas que seja saboroso e, de causo em causo, deixe que todas as outras mulheres se identifiquem.
Ontem mesmo ouvi uma delas. Contou que o primeiro casamento acabou porque o marido implicava com a maneira como ela passava as camisas. O segundo foi-se embora também pelo mesmo motivo. As passadeiras contratadas estressavam o cidadão com a má qualidade do serviço. Quando o terceiro marido começou a reclamar das camisas, que continuavam amarrotadas depois de se submeterem ao ferro de passar, a mulher que se dispôs a me contar a sua saga pelos absurdos da vida conjugal telefonou para a velha mãe. Pediu, pelo amor de Deus, a fórmula da goma das mulheres da família. Salvou o casamento, que agora vai todo engomado, um pouco chatinho, mas o que é que se pode fazer?
Essa tem sido a minha agenda de trabalho. Anoto histórias da vida delas para um livro, um documentário, o formato que tiver, de retratos femininos. Nada de discursos ideológicos ou pedradas no machismo. Faço perguntas, estimulo a memória, jogo iscas de repórter. Principalmente ouço com atenção o que a mulher está dizendo, sendo essa toda a paga pelo serviço. Não é pouco. Algumas mulheres reclamam do homem-polvo, aquele cheio de mãos a procurá-las nos momentos mais inconvenientes. Eu sou o que se chama de todo ouvidos. A antena centrada nelas. O gravador orgânico das orelhas ligado. Posto-me diante da entrevistada e perscruto o ser feminino.
Uma delas me contou que um dia saiu apressada de casa e vestiu a primeira calcinha que apareceu na gaveta, uma que tinha os fundilhos em formato de coração rendado, velha lembrança de uma noite brincalhona com um ex-namorado. Foi justo neste dia que teve um princípio de enfarte no meio da rua e acabou no hospital. Fez exames dolorosos, respirou entubada e foi grampeada com muitos fios. A tudo suportou, estoica. O ridículo da calcinha, no entanto, exibida diante dos doutores da junta médica, a persegue até hoje. São histórias comuns às mulheres, embora nem todas sejam capazes de, após descobrir a traição do namorado, ter a frieza de, como gesto de despedida, ir até a gaveta de cuecas dele e na calada da noite salpicá-la de pó de mico. Nem todas fariam o mesmo, mas todas compreendem o gesto.
Há cenas de vingança, de ciúme e de poesia, como a da mulher que vai catando piolhos na cabeça do filho enquanto este, fazendo um trabalho escolar, pergunta o que quer dizer “infinito”. Nada de grandes feitos. Se alguma foi eleita presidente ou escalou o Aconcágua, ótimo, mas eu prefiro recolher a história daquela moça que uma noite de sexta-feira, bêbada com os amigos num bar de calçada, se engraçou com um rapaz charmosamente feio, modernamente fora dos padrões de se vestir. Só depois de alguns beijos foi alertada, pelos amigos sóbrios, de que se tratava de um homeless.
Procuro mulheres capazes de revelar nesses flashes um pouco da essência feminina em 2011 e que ao final, reunidas umas 200 histórias, eu tenha uma amostra sem pompa, sem números do IBGE, de como elas vivem seus novos dramas e comédias. Elas invadiram o mercado de trabalho, o Palácio Alvorada e são responsáveis pela manutenção de quase metade das famílias brasileiras — mas como reagem quando mais um bonitão com que estão saindo revela, na quinta noite de jantares e papinhos sobre grifes italianas, que é gay?
O que faz uma mulher quando a psicanalista com que se consulta para resolver, entre outros problemas, o da compulsão ao consumo, vai ao closet do consultório e traz de lá, mulherzinha como qualquer outra, seus novos sapatos Louboutin e Blahnik?
Algumas dessas cenas foram contadas por artistas de TV, outras por jornalistas importantes, mas todas permanecerão anônimas. Nada de nome ou sobrenome, seja de salário executivo ou tíquete-refeição. O importante é que todas se reconheçam e digam ao lerem o depoimento, que poderiam ser a esposa que encontra o marido com a outra num bar e despeja a latinha de cerveja na cabeça dele — ou que, pensando bem, poderiam ser a outra também."
Joaquim Ferreira dos Santos

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