outubro 11, 2011

As mariposas

"Era como se fosse um membro da família, sempre no meio da sala, iluminando a tudo com o halo branco de sua simplicidade genial. Eu jamais poderia imaginar que estivessem tramando contra sua pacata existência. Gráfica, arredondada como uma Marta Rocha, não aborrecia ninguém. Fazia o seu. Esparramava-se por todos os cômodos da casa sem empáfia. Servia. Era do bem, e gostava de deixar tudo às claras, para que o pão fosse visto como pão, e o queijo, como queijo.
As coisas do mundo ficavam mais compreensíveis com a sua presença básica, um elemento de absoluta majestade que se confundia até com o texto bíblico, pois no início de tudo Deus fez a luz. Viu que era boa e que ela iluminava a mesa sobre a qual se faziam as refeições, e isso era muito bom. Depois, ela se pagava humilde quando sobre algum casal se instalavam as necessidades prementes do amor, e isso então era uma loucura.
Infelizmente, eis que se instaura o apocalipse decorativo, e cumpre-se o dever de informar que esta figura fundamental na vida de todos já não habita entre nós. Abriu nova edição da mostra Casa Cor, com ambientes desenhados dentro da mais moderna sofisticação. Foi lá que a ausência dela iluminou a constatação. Apagaram um dos pilares da civilização.

A lâmpada do centro da sala morreu.
Os arquitetos já haviam acabado com a pia arredondada (eles detestam curvas), aquela em que os avós escovavam os dentes dos netos, e depois todos assistiam, fascinados, ao redemoinho barulhento da água. A pia ficou reta, o ralo escondido num canto para que ninguém veja o movimento das águas na pressa selvagem rumo aos subterrâneos da existência.
Depois, os arquitetos quebraram as paredes, essas fortalezas que embalavam o morador com a sua simulação do útero materno e tornavam as casas espaços diversificados, o quarto do irmão, o escritório do papai, a cozinha da mamãe. As paredes davam aconchego e segurança. Foram-se também. O apartamento virou um imenso loft sem intimidade, a versão Big Brother que a arquitetura criou para o antigo lar, doce lar. Você está sendo visto o tempo todo. O loft deixa que a visita entre pela sala e dali, da porta, ao primeiro cumprimento, já veja até a banheira dos anfitriões.
Agora, chegou a vez de a lâmpada convencional, aquela que ficava grudada, solitária, no centro do cômodo, tão acolhedora e servil, ser despedida de sua atividade fundamental. Era simples e funcional. Você chegava a casa, enfiava a chave na fechadura, clicava o botão ao lado da porta e, pronto, surgia o arremedo da luz bíblica. Instalava-se o início da vida. Infelizmente, a lâmpada de centro virou nostalgia como a escarradeira, a cristaleira e o Trio Maravilhoso Regina sobre a penteadeira.
De vez em quando, tão simbólicas são essas coisas, as lâmpadas, tão próximas às nossas vidas, morriam — mas imediatamente tocava na cabeça do brasileiro o jingle sorridente:
Se a lâmpada queimar/ Não adianta estrilar/ E nem bater o pé/ O que resolve é ter logo à mão/ Lâmpada GE”.
Foram-se os verbos como estrilar, foram-se os jingles, os intervalos dos programas de rádio em que eles tocavam, mas, sejamos justos, dessas perdas os arquitetos e decoradores são inocentes. Em seus prontuários, além das investigações instauradas acima, como o extermínio da pia e a derrubada das paredes, estão as mortes dos tacos de madeira, tão acolhedores, sensuais, e a troca pelas placas brancas de cimento, que combinam com propaganda de leite em pó, mas não trazem calor humor à alma dos moradores. O cimento que invadiu o chão dos novos ambientes fica lindo na imagem em HD, mas não tem carinho pelo ser humano. Zero de memória afetiva. Não esquenta o pé no chão de madeira que serviu de plataforma para nossos antepassados.
No boletim de ocorrência em que são acusados pela morte das lâmpadas tradicionais, essas inocentes tão úteis, os arquitetos da Casa Cor aparecem no local do crime trocando a vítima por luminárias. São versões contemporâneas dos candelabros italianos. Verdadeiras esculturas de luz, dignas dos melhores palcos teatrais da cidade, elas dificultam o que de início era só um clique, e se fazia o sol dentro de casa. A Humanidade era prática. Na nova Casa Cor não há qualquer cômodo iluminado por arranjos com menos de dez lâmpadas. São luminárias capazes de figurar nos livros de design, mas que necessitam de um manual de instruções e equipe doméstica dedicada apenas à sua conservação. Como viver em paz se sobre sua cabeça reina, num exemplo tirado da mostra, uma luminária feita de 15 lâmpadas e dezenas de taças de vinho? Desligar a lâmpada é apagar o inconsciente coletivo do brasileiro. Eu me lembro da lâmpada no centro da sala e imediatamente ouço Adoniran Barbosa cantando “As mariposas quando chega o frio/ Ficam dando volta em volta da lâmpada pra se esquentar (...) Eu sou a lâmpada/ E as mulé/ São as mariposas”.
Está chegando o verão, o momento em que nossas mães pegavam a bacia cheia de água, subiam na cadeira e tentavam fazer com que os cupins da estação mergulhassem e deixassem de azucrinar, outro verbo que se foi, a lâmpada e o resto da família na hora do jantar.
Para onde vão as mariposas? E os cupins voadores do verão? Quem demoliu a casinha branca lá na Marambaia e botou abaixo a trepadeira que na primavera ficava florescida de brincos-de-princesa?
Modernizem, OK, mas deixem algum taco de Parquet Paulista para contar a história, alguma dobradiça de porta rangendo para a gente lembrar a casinha pequenina onde nasceu o nosso amor de morar ao estilo brasileiro. Foram-se as passadeiras de linóleo, as portas com tramela, as janelas de gelosia, as sancas, as ancas, e junto com tudo isso o mingau de Maizena, a enceradeira GE, o abajur lilás, o criado mudo, o sofá-cama Drago,o avental todo sujo de ovo, o rodapé, a máquina de costura Elgin, o azulejo onde estava escrito que era um lar, o fogão Jacaré, a toalha que parecia linho mas era Linholene, a imagem de São Jorge entre as plantas na varanda e as cadeiras na calçada.
Fiquem com tudo que é moderno, viva a Casa Cor! Mas eu quero a lâmpada no centro da sala e, junto com ela, as mariposas que me são de direito".

Joaquim Ferreira dos Santos

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