setembro 06, 2011

Aquela manhã em setembro

"O 11 de Setembro é uma daquelas datas: duas torres gêmeas em chamas e pensamos de imediato onde estávamos, com quem, a fazer o quê. Acontece o mesmo com os ingleses que ouviram na rádio a invasão nazista da Polônia em 1939.
Quando a realidade entra no campo da ficção, sentimos uma vontade desesperada de nos agarrarmos à realidade. No caso, a nossa. E de a fixarmos para a posteridade. É como se a nossa cabeça dissesse: o mundo pode ter enlouquecido, mas eu ainda sei quem sou, onde estava, com quem estava.
Infelizmente, o mundo não enlouqueceu no dia 11 de setembro de 2001. Ou, para usar a linguagem preguiçosa dos comentadores, o mundo não "mudou" naquela manhã em Nova York. Os atentados não inauguraram a "era do horrorismo" (como lhe chamou Martin Amis) nem, infelizmente, acabaram com ele.
Para ser honesto, o mundo, o meu mundo, o mundo da Europa, e dos Estados Unidos, talvez tenha mudado em setembro. Mas não em setembro de 2001. Melhor adiantar o calendário para 2008.
Lembro-me bem: estava em Nova York para, deliciosa ironia, escrever um texto sobre o sétimo aniversário dos atentados. Li muito. Observei idem. Perguntei bastante.
E, a 50 metros do meu hotel, falia o Lehman Brothers. Nos meses seguintes, os governos do Ocidente acorriam ao desastre e arrastavam as suas economias para o buraco. A União Europeia vive hoje uma crise potencialmente destrutiva que pode alterar a vida dos europeus de uma forma que os atentados terroristas jamais conseguiram.
Até porque os atentados não foram coisa única ou isolada. Não apenas porque, depois de Nova York, tivemos Bali, Madrid, Londres, Kandahar --a lista é longa. Mas porque existiram outros atentados antes de 2001 que explicam, e até preparam, aquela manhã de horror.
Aliás, se dúvidas houvesse, bastaria ler um pequeno e precioso livro que a Babel Brasil acaba de editar. Intitula-se "Compreender o 11 de Setembro", foi escrito pelo investigador português Vasco Rato e tem um primeiro mérito evidente: compreender o 11 de Setembro é recuar até 1979. Foram três os acontecimentos decisivos: a invasão soviética do Afeganistão; a revolução iraniana de Khomeini; e a ocupação armada da Grande Mesquita de Meca por fundamentalistas sauditas.
Não vale a pena perder tempo com cada um dos episódios - o livro está nas bancas e lê-se com prazer e proveito. Importa apenas dizer que os três concorrem para uma mesma narrativa: a narrativa do cerco e da resistência islamita a ele.
O cerco podia estar nas tropas soviéticas que cruzavam a fronteira para acudir ao poder comunista afegão; ou nas tropas francesas que, com cobertura do governo saudita, se permitiam a pisar território sacro para expulsar os irmãos da fé.
A resistência ao cerco vinha do Irã xiita: o exemplo triunfal da República Islâmica, que provocou orgasmos de imbecilidade em Michel Foucault, era a prova de que era possível confrontar o Grande Satã e todos os governos-fantache que Washington controlava à distância.
A Al-Qaeda nasce desta mentalidade de cerco. Nasce em 1988, ano em que Gorbachev manda retirar as suas tropas do Afeganistão. Osama bin Laden, que lutara ao lado da resistência, tinha aprendido uma lição inestimável: derrotar as potências opressoras era possível; como era possível punir, em qualquer canto do globo, os inimigos da "umma" e da sua reunificação.
É o próprio Osama bin Laden quem, em 1996, faz as devidas apresentações numa "Declaração de Guerra contra o Ocidente" que Vasco Rato analisa. Cristalino: a regeneração islâmica passa pelo repúdio de formas "ocidentalistas" de governo e pelo retorno ao tipo de organização política originalmente defendida pelo Profeta, no século 7.
Mas passa também, e mais importante, por punir os infiéis e os apóstatas, independentemente de eles se encontrarem em Meca, Jerusalém --ou Nova York. A "guerra santa" não conhece fronteiras.
A reforçar o programa das festas, uma certeza apaziguadora: a certeza de que os Estados Unidos tinham perdido a sua firmeza vital depois das aventuras no Vietnã. Isso vira-se nos atentados de Beirute, em 1983; ou em Mogadíscio, em 1993. Sempre que a "jihad" avançava, o infiel recuava. Eis o convite perfeito para que a besta tente abocanhar o que resta.
Abocanhou. Dez anos atrás, naquela manhã em setembro. Sabemos o que veio a seguir: duas guerras --no Afeganistão e no Iraque-- que acabaram com duas ditaduras sanguinárias; mas que estão longe de garantir "democracias" dignas desse nome.
Também sabemos que, depois do Iraque, ou seja, depois da destruição da estrutura sunita do país, o Irã emergiu como potência regional (e, a prazo, nuclear) - a maior ameaça à sobrevivência de Israel desde a sua fundação.
Mas também sabemos que a Al-Qaeda perdeu Osama bin Laden, al-Zarqawi, Mohammed Atef. E que o estratego do 11 de setembro --Khalid Sheikh Mohammed-- apodrece em Guantánamo, aquela prisão militar que Barack Obama prometia encerrar no dia em que tomasse posse. Ou talvez na manhã seguinte, já não sei bem.
Moral da história? Vasco Rato olha para a "primavera árabe" de 2011 e vê nela a principal promessa de que os mortos dos últimos dez anos não foram em vão. Isso, claro, se as "primaveras democráticas" na Tunísia, no Egito ou na Líbia, para ficarmos apenas nos casos consumados, não proporcionarem o mesmo tipo de espetáculo que a "primavera democrática" ofereceu em Gaza, em 2006, com o triunfo do Hamas.
O que sabemos da Tunísia, do Egito e até da Líbia aconselha prudência --e, opinião pessoal, uma certa dose de pessimismo. Mas este é um dos raros casos em que o colunista concede prioridade aos outros --e espera, sinceramente, não ter a razão do seu lado".

João Pereira Coutinho

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