agosto 09, 2011

Meia-noite em Copacabana



"Eu fui ver de novo a viagem de Woody Allen pela meia-noite de uma Paris de sonhos e desta vez fiquei impressionado com a capacidade de um ajuntamento de pessoas notáveis definir para sempre o charme de uma cidade. Peguei um táxi na saída do cinema no exato momento em que soavam na Cinelândia as 12 badaladas do carrilhão do prédio da Mesbla. Pedi ao motorista que me deixasse em Copacabana e, quando dei por mim, eu estava sentado à mesa do restaurante Le Bec Fin, na Copacabana do final dos anos 1950, perguntando para a Adalgisa Colombo se ela concordava, como havia dito o Artur Xexéo, que eu só escrevia nostalgia.
Nossa eterna Miss Brasil 1958 mostrou a alça do maiô Catalina que lhe ia por baixo do vestido-trapézio e perguntou se eu não queria acompanhá-la em seguida num mergulho noturno. Sobre o Xexéo, disse apenas um enigmático “faz-me rir, essa é de lascar o cano”. De lutas, ela só queria saber das do Waldemar Santana com o Hélio Gracie, do Jerônimo com o Caveira, do Clovis Bornay com o Evandro Castro Lima, do Tenente Rip Master com os cheyennes, e principalmente das do bambolê contra as gordurinhas da cintura.
A mesa, onde todos se deleitavam com a moda do estrogonofe, riu muito da frase de Adalgisa, e alguém, soltando a fumaça do Hollywood com filtro, disse que aquela piada precisava entrar sexta-feira no “Balança mas não cai”, da Rádio Nacional.
Eu ri também, afinal estava à meia-noite do que Gilberto Braga iria chamar mais adiante de “os anos dourados” do Rio. Carmem Mayrink Veiga brilhava à mesa com uma estola de peles que mantinha conservada na geladeira da Casa Canadá. Jorginho Guinle cortava o bife de Kin Novak.
Aproveitei uma brecha no sorriso que o bambolê da Adalgisa provocara e girei as antenas. Num canto do restaurante, o vice-presidente João Goulart conversava com a mão nas coxas, um tremendo mocotó, da vedete Aída Campos, também conhecida como Joãozinho Boa-Pinta por causa do cabelo cortado rente à nuca. Ibrahim Sued, numa mesa de fundos, acabava de escrever as notas para a coluna do jornal e carimbava em cima das laudas o recado para o copydesk: “Favor esquecer Camões. Proibido mexer no meu estilo. Merci.”
Aquele ambiente era o que havia de mais kar, expressão que Ibrahim usava para definir bom gosto, e eu precisava equilibrar a cubalibre que me ia na alma com alguma coisa mais shangay, o brega, no dicionário do mesmo colunista. Pensei no Beco da Fome, da Prado Júnior, pensei em ir até o Posto Seis assistir a Sandra Sandré no “Noites cariocas” da TV Rio. Fui prontamente atendido pelo cronista Antonio Maria, que me percebeu fora daquele tempo. Ele puxou um Caporal Amarelinho, ajeitou o barbante que lhe segurava as calças, e me perguntou na lata “Quem seria capaz de abrir o peito e mostrar a ferida feita pela mulher amada?”, trecho de uma crônica que ele só escreveria muitos anos depois.
Maria estava deprimido, o que não era novidade, dessa vez perdido de amor pela vedete Rose Rondelli, a Miss Campeonato da Rádio Mayrink Veiga. Acabara de vê-la nos braços de Sérgio Porto, os dois saindo de um show do Johnny Alf na Boate Plaza da Princesa Isabel. Maria disse que chegou a pensar em tomar uma providência que o levaria às manchetes sangrentas da Luta Democrática — mas se viu acovardado e recuou o golpe.
Eu estava eufórico em ter sido levado de táxi ao melhor período da existência do Rio e não podia perder tempo com a tristeza daquele samba-canção. Fui sincero, mas fofo. Disse, Maria, ninguém te ama, ninguém te quer, mas eu não me chamo Baudelaire para ficar aqui ouvindo o teu lé-lé-lé. Maria riu e me jogou a chave do seu Cadillac, um conversível preto com que cruzava Copacabana — e saí correndo para o apartamento de Nara Leão, na Atlântica, onde rolava uma reunião bossa-nova com Menescal e Bôscoli.
No caminho eu vi mulheres de vestido saco,o Falcão Negro enfiando a espada embaixo do braço do vilão Dary Reis, lambretas fazendo roleta paulista, vitrines de O Rei da Voz passando o “Noite de Gala” com o Flávio Cavalcanti,topetes esculturados com Gumex, um pequeno jornaleiro gritando “Cachorro faz mal à moça”, e o cartaz do Rian anunciando Brigitte Bardot em “E Deus criou a mulher”.Quando olhei para o céu lá estava o Sputnik russo espionando a felicidade de ser carioca no final dos anos 1950.
Parei com o Cadillac num edifício da Atlântica cercado de policiais que investigavam a morte de uma moça, currada e jogada do último andar, chamada Aída Curi. Reconheci David Nasser e Amado Ribeiro entre os repórteres em busca de notícia na calçada. Nara não morava ali, mas um pouco adiante. Passei pelo David Nasser e, só para confundir os tempos, gritei “não se esquece de passar para o on-line”. Ninguém riu. O fotógrafo Jean Manzon, atento, me achando algum novo maluco de Copacabana, disparou o flash da Rolleyflex na minha cara. Deve ter saído em alguma reportagem de “O Cruzeiro” sobre a juventude transviada.
No apartamento de Nara, vi sua irmã, a elegante moderna Danuza Leão, sentada num pufe. Tive vontade de dizer que acabara de estar com seu futuro marido, o gordo sentimental Antonio Maria, mas achei que ela teria uma convulsão de tanto rir do disparate. As gargalhadas poderiam atrapalhar aquele jovem de sotaque baiano que cantava, baixinho, um samba de Ary Barroso no meio da roda. Acionei o aplicativo de gravação do meu celular e registrei João Gilberto ensaiando a bossa nova. Só não mostro porque esqueci no táxi, uma DKW-Vemag que foi me pegar na Atlântica de pista única, no final do filme sobre a felicidade carioca de estar à meia-noite na Copacabana dos anos dourados".

Joaquim Ferreira dos Santos

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