julho 01, 2011

Os Mortos

"Lily, a filha do zelador, estava literalmente esgotada. Mal acabava de conduzir um convidado à saleta atrás do escritório, ajudando-o a tirar o casaco, e a impaciente sineta da entrada tornava a soar, obrigando-a a precipitar-se pelo corredor vazio para receber um novo hóspede. Ainda bem que não precisava atender as mulheres. Senhorita Kate e senhorita Júlia tinham pensado nisso e convertido em vestiário o banheiro de cima. As duas, em grande agitação, riam e tagarelavam sem parar, revezando-se a todo momento no topo da escada, de onde perscrutavam a entrada e perguntavam a Lily quem havia chegado.
O baile anual organizado pelas Morkans era sempre um grande acontecimento. Todos os seus conhecidos compareciam: parentes, velhos amigos da família, membros do coro dirigido por Júlia, os alunos de Kate com idade suficiente e mesmo alguns alunos de Mary Jane. O baile nunca fracassara. Ano após ano, o mais remotamente que sepudesse recordar, realizava-se de forma esplêndida: a época em que Kate e Júlia, após a morte do irmão Pat, haviam deixado a casa de Stoney Batter e levado Mary Jane, sua única sobrinha, para morar com elas no enorme e lúgubre sobrado na ilha de Usher, cujo andar superior alugaram do senhor Fulham, dono da casa de cereais do andar térreo. Istose dera há mais de trinta anos. Mary Jane, naquele tempo uma garotinha, sustenta agora a casa como organista emHaddington Road. Estudara no Conservatório e, todos os anos, apresentava um concerto de seus alunos no AncientConcert Rooms. A maioria deles provinha das melhores famílias que viviam em Kingstown e Dalkey. Apesar de idosas,as tias contribuíam com seu quinhão. Júlia, embora com os cabelos quase brancos, ainda era primeiro soprano da Igreja Adam and Eve e Kate, fraca demais para sair todo dia de casa, dava lições de música a principiantes, no velho piano quadrado da salados fundos. Lily cuidava da casa. Não obstante levassem vida modesta, gostavam de comer bem, de ter na mesa o que havia de melhor: lombo, chá de três xelins o pacote, e cerveja engarrafada de primeira qualidade. Lily raramente cometia erros e por isso vivia bem com as três patroas. Elas eram um pouco rabugentas, apenas isso. Contudo, uma coisa não admitiam: serem contestadas.
Tinham realmente muitas razões para estar agitadas naquela noite. Passava das nove e nem sinal de Gabriel com aesposa. Por outro lado, sentiam um medo terrível de que Freddy Malins aparecesse embriagado. Não queriam, por nada neste mundo, que as alunas de Mary Jane o vissem nesse estado, pois às vezes era difícil controlá-lo. Freddy sempre chegava tarde, mas não compreendiam por que Gabriel se atrasava. E era isso que as trazia à escada de dois em dois minutos para perguntar a Lily se Gabriel ou Freddy haviam chegado.
-Ó, senhor Conroy, boa-noite - disse Lily a Gabriel, ao abrir-lhe a porta. - A senhorita Kate e a senhorita Júlia pensavam que o senhor não viria mais. Boa-noite, senhora Conroy.
-Compreendo que tenham se preocupado - disse Gabriel. - Mas elas esquecem que minha esposa leva três longas horas para se arrumar.Demorou-se sobre o capacho, limpando a neve das galochas, enquanto Lily acompanhava sua esposa até a escada, de onde gritou:
-Senhorita Kate, o senhor Conroy chegou.
-Kate e Júlia desceram, hesitando nos degraus. Ambas beijaram a esposa de Gabriel, disseram que ela não morreria mais e perguntaram se Gabriel também viera.
-Estou aqui, tia Kate, pontual como o Correio - gritou este no escuro vestíbulo. - Podem subir, eu irei depois.Continuou a rascar vigorosamente os pés, enquanto as três mulheres subiam a escada em direção ao quarto de vestir. A neve estendera delgado manto nos ombros de seu sobretudo e cobrira com brancas biqueiras a ponta desuas galochas. Ao abrir o casaco, os botões rangeram no pano endurecido pelo frio e o sopro gélido das ruas escapou das dobras e fendas de suas vestes.
-Está nevando outra vez, senhor Conroy? - perguntou Lily. Ela precedeu-o a caminho da saleta, a fim de ajudá-lo atirar o sobretudo. Gabriel sorriu ao ouvi-la pronunciar errado o seu nome e olhou para ela. Era uma jovem esbelta, empleno amadurecimento, de rosto claro e cabelos cor de feno. A luz de gás tornava-a ainda mais pálida. Gabriel conhecera-a quando era apenas uma criança e costumava sentar-se no primeiro degrau da escada, embalando uma boneca de pano.
-Sim, Lily. E creio que vamos ter neve a noite inteira.
Gabriel olhou para o teto que tremia com o arrastar e bater de pés no andar de cima. Ouviu por um momento osom do piano e voltou-se novamente para a jovem que, com muito cuidado, dobrava e guardava o seu casaco no altode uma prateleira.
-Diga-me Lily - perguntou em tom amável - você ainda vai à escola?- Ó, não, senhor! Deixei de estudar há mais de um ano.
-Suponho então - acrescentou Gabriel, brincando - que um dia desses iremos ao seu casamento?A jovem olhou-o por sobre os ombros e respondeu com azedume:
- Os homens de hoje são todos uns aproveitadores bons de conversa.
Gabriel enrubesceu como se tivesse cometido um deslize e, sem olhar para ela, tirou as galochas e esfregouvigorosamente o cachecol nos sapatos de verniz.Era um rapaz forte, bastante alto. O acentuado rubor de suasfaces subia até a testa onde se atenuava em manchas informes e rosadas. Em seu rosto liso, cintilavam sem descanso as lentes e os aros dourados dos óculos que lhe cobriam os olhos delicados e inquietos. Os cabelos,negros e lustrosos, eram repartidos no meio e penteados numa longa curva atrás das orelhas, onde se enrolavam levemente no sulco deixado pelo chapéu.
Quando terminou de lustrar os sapatos, endireitou-se, ajustou o paletóem seu corpo robusto e, afobadamente, tirou uma moeda do bolso:
- Lily - disse ele, colocando a moeda em sua mão. - Estamos no Natal, não é? Tome... uma pequena...
Apressou-se em direção à porta.- Oh não! - exclamou amoça, saindo atrás dele - Não posso aceitar.- É Natal! É Natal! - disse Gabriel, quase correndo para a escada e agitando a mão num gesto de desculpa.
Vendo-o subir a escada, Lily gritou:- Então muito obrigada, senhor Conroy.

Gabriel esperou, junto à porta do salão, que a valsa terminasse, ouvindo vestidos roçarem contra ela e o rumor de pés que se arrastavam no assoalho. Estava ainda perturbado..."
James Joyce (Dublinenses)



 "Os quinze contos de Dublinenses são, sem dúvida, a porta de entrada para a obra do mais radical escritor do século 20: o irlandês James Joyce, autor de Ulisses e Finnegans Wake. Escritos quanto o autor tinha apenas 23 anos, os contos de Dublinenses são pequenos e primorosos retratos em preto e branco da Dublin natal de Joyce. Fotos amareladas de personagens tolhidos pelo catolicismo rígido e pelo autoritarismo familiar em vigor na época. Personagens confinados em vidinhas vazias. Vidas rasteiras, rotineiras. Sem grandeza, sentido, horizontes. Segundo o próprio Joyce, sua intenção era escrever um capítulo da “história moral” de seu país. "Escolhi Dublin como cenário porque esta cidade parecia ser o centro da paralisia”. Definição mais do que perfeita para uma obra simplesmente imperdível. Destaque para “Os Mortos”, um dos maiores contos da literatura inglesa de todos os tempos".
Fonte: http://pt.shvoong.com/books/novel-novella/1762219-dublinenses/#ixzz1Qr5uq4kS 


Nota: Mergulho (raso) no universo de Joyce, motivado pela leitura de  DUBLINESCAS  de Enrique Vila-Matas .

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