junho 14, 2011

A fonte da juventude


"Eu sou do tempo em que "a vida começava aos 40". Um dia perguntamos o segredo desse limiar ao nosso professor de História. Aos 40, disse, a sexualidade enfraquece e, sem o aguilhão do desejo, o sujeito inicia uma nova vida dedicada às grandes causas morais e religiosas. Aos 14 anos, eu que só vivia o desejo, mas estava longe dos 40, deixei essa lembrança na gaveta dos esquecimentos até que, nestes meus 70 e poucos, reli O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway.Era um menino de 20 anos quando li esse livro pela primeira vez. O herói, um velho chamado Santiago, pescador azarado que sonhava com leões, embora morasse numa cabana nas praias brancas e ensolaradas de Cuba, não me impressionou. Frequentador da bela praia de Icaraí, então virgem dessa vergonhosa poluição que a assola há mais de 40 anos, eu fiquei mais surpreendido com as imagens dos leões e com a batalha do velho contra o gigantesco e precioso marlim, o maior e mais magnífico peixe que jamais pescou em toda sua vida mas que, depois morto e atado ao barco, é abocanhado por vorazes e traiçoeiros tubarões. Moço, eu li o livro e ignorei a parábola; velho, eu reli o livro e compreendi a fábula em sua bela e tenebrosa densidade. O marlim destroçado somos todos nós que temos dentro de nossas vidas tubarões, meninos e Santiagos com força para morrer de pé, lutando por melhores histórias.
Hoje, eu vejo que uma das gratificações de uma longa vida é poder revisitá-la. É ser capaz de revê-la nos seus esplendores, medos, dúvidas e angústias. E qual não foi a minha surpresa quando me encontrei - agora velho - com o velho Santiago do velho Hemingway e revivi essa pescaria fracassada. Quantas vezes questionei-me se, alguma vez, pesquei um marlim. O que significa pescar um gigantesco e desejável marlim para um velho? Seria mandar tudo às favas e começar de novo? Mas como começar, se chegamos ao fim da linha? Seria ter o seu trabalho reconhecido? Seria ganhar uma loteria que pudesse ampliar o seu modesto patrimônio de professor 20 vezes em quatro anos? Seria receber de volta os presentes que distribuiu ao longo de sua vida? Seria viver a sua solidão em pleno diálogo consigo mesmo, procurando esquecer as perdas e abafar a devastadora dor de ver a pessoa amada perder a alma?
Por outro lado, o que é para alguém no fim da vida testemunhar a sua maior obra ser destruída por tubarões? Esses tubarões que, invisíveis, vivem à nossa volta e nos obrigam a descobrir a inveja e o ressentimento no lugar da fraternidade e do companheirismo? Mas o que fez Santiago quando chegou à sua praia com a carcaça inútil do peixe com o qual havia lutado a sua tremenda batalha? Essas batalhas que todo velho luta diariamente contra a ingratidão, contra o abandono, contra o amor roubado pela vida e pelos deuses, contra a perda de algum ente querido, enterrado ainda quente no frio da terra?
O velho Santiago não abjurou sua vida ou amaldiçoou sua profissão ou renegou o seu destino. O que ele fez foi dormir e sonhar com leões. E amar seus filhotes e brincar com eles, tal como eu amo as pessoas que estão à minha volta."

Roberto Damatta
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