Ela tem uma franja perversa e olhos azuis a condizer. Os anéis acentuam a elegância das mãos. É tão bonita que talvez os homens não saibam que nunca falhou um mês da hipoteca, que não precisa de um senhor que a ajude ou de um médico casado que a leve a Veneza durante um congresso. Ela desce a Rua Garrett, os estrangeiros na Brasileira levantam a cabeça dos guias turísticos, a estátua de Pessoa gostaria que ela se aproximasse para uma fotografia, as outras miúdas analisam-na como se fossem seguranças num aeroporto. Pára na montra da Bertrand e os adolescentes gay olham para ela com a devoção dos pastorinhos em Fátima. Ela é luz e aparição. Tem sacos de compras numa mão, a outra está livre, engodo irresistível para pretendentes. Mas ninguém tenta a sorte. No passeio, dois advogados com bronzeado de ski rodam os pescoços de hienas. Um deles diz: "Mulheres assim só estão solteiras dez minutos." O amigo responde: "Há lista de espera. Mal ela acaba com um já está outro a tocar-lhe à campainha, mas tem de ser rico ou famoso." Ela não se importa. Desde cedo que muitos homens a tratam como se fosse estúpida e domesticável, oferecendo presentes, promessas de casamento e o mesmo tipo de adoração que se tem por um poster. Ela sabe que é bonita. Durante muito tempo quiseram fazer-lhe crer que era uma falha. Quem a vir descer a Rua do Carmo percebe que não acredita em nada disso. Sabe que é mais singular que um gelado do Santini, um verso de Sá Carneiro ou o crepúsculo de um dia limpo em Lisboa quando ela por fim aparece no Chiado".
"GENTE DA MINHA TERRA
Querida Mariza, não cantes mais para mim, não voltes a tirar-me o chão, a fúria, a lucidez quando me preparo para, depois de ler o Manifesto Anti-Dantas, escrever sobre a necessidade de Portugal continuar a ser, tantos anos mais tarde , qualquer coisa de mais asseado . Por favor, não me apareças a cantar sobre a tristeza que trazes, deixando-me cativo de uma nostalgia que não quero, desmontando-me o coração de gesso como quem esmaga um pequeno brinquedo a pilhas. Peço-te que não repitas esta coisa de seres um punho na garganta , um susto na pele, uma rasteira ao meu mau feitio, quando o que mais quero é ser bruto e falar da geração que se deixa representar pela peste de encolher sempre os ombros , desculpando-se como um mestre de obras incompetente : " Isto é Portugal". Não me segures a mão nem me tapes a boca nem faças de mim um miúdo em soluços , caído e sem luta, no colo de uma língua, de um país, de uma gente a quem tantas vezes quero apedrejar , cuspir e insultar. Pára de cantar sobre a gente de nossa terra, porque não consigo não acreditar em ti - e fico mais pequeno, menos feroz, outra pessoa. Não nos sequestres a razão desta maneira, porque se cantas assim seremos sempre sentimento e não deixaremos jamais de acreditar que a tristeza é bonita e nos aconchega quando tudo pega fogo e o caminho se faz ainda mais desgovernado. Ou então não me oiças, e continua, por favor , continua porque neste exílio dos degredados e dos indiferentes , neste entulho das desvantagens e dos sobejos , só tu nos fazes querer ser ainda gente desta terra."
HUGO GONÇALVES em Fado, Samba e beijos com língua
Nota: Outras crônicas podem ser lidas clicando no título da postagem
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