maio 09, 2011

Vergonha


“A vergonha é um mistério. Quando criança, via pessoas humildes ficarem de pé na sala de visitas da casa dos meus pais, intimidadas com os tapetes persas, os Gallés e óleos. Não ousavam sentar-se, como se suas calças e saias pudessem macular o tecido dos sofás. Tinham vergonha de serem pobres. Pensava que elas sentiam vergonha naquela sala da mesma forma que eu me envergonharia de fazer xixi na calça.
Pois eu, aos 18 anos, longe de ser criança, tinha novamente vergonha. Não era vergonha por ter sido de esquerda, nem por ter sido preso, nem por ter tido meu nome no jornal tachado de terrorista. Não era vergonha por ter feito algo de errado ou por ter conseguido sair da prisão quando tantos lá permaneciam (…). Demorei muito para entender esse sentimento. Havia a lembrança desagradável da tortura – da dor em si, certamente, mas sobretudo do meu papel ali, implorando clemência ao torturador, mendigando um aparelho de asma (…). Os rostos da repressão mudavam o tempo todo – quem me prendeu não foi quem me interrogou; quem saía comigo para os encontros fictícios não era quem me interrogava; quem me transportou ao Rio não me torturou; dos rostos dos torturadores minha santa memória apagou boa parte das imagens; e no Dops novas faces surgiam o tempo todo, faces burocráticas, investigadores de plantão, escrivães, guardadores de celas. Eu não poderia vingar-me de um sistema, toda vingança é pessoal e aquele era um jogo que eu tinha perdido.
Mas aquele sentimento ia além da memória da humilhação em momentos difíceis e da impossibilidade de zerar o marcador em alguma contabilidade oculta da psique. No fundo, sentia-me constrangido por não ter sido capaz de cuidar bem de mim. Envergonhado feito o barrigudo que ostenta na sua pança um testemunho público da sua incapacidade de cuidar da sua saúde. Mas com um agravante: o barrigudo se envergonha do resultado da gula, mas come com prazer. Minha vergonha era mais próxima àquela do estuprado, a vergonha por não ter sido capaz de se proteger da maldade do mundo.
Quando disse a meu pai que ele estava com leucemia, tinha sobrevida prevista de um a cinco anos, seu rosto ficou corado instantaneamente, como se tivesse sido pego em flagrante ao fazer algo errado. Ficou em silêncio por alguns minutos, ruborizado. Tinha 59 anos. Não me perguntou por que nem duvidou do diagnóstico. Disse apenas, Persio, só vou lhe pedir uma coisa. Jure por tudo o que há de mais sagrado que você não vai contar isso para ninguém. Absolutamente ninguém. Fica entre nós dois e o médico.
Meu pai não teve raiva do mundo nem lamentou a velhice feliz que poderia ter tido. Não culpou a genética, um vírus maligno ou os efeitos cancerígenos dos corantes. Ficou apenas com vergonha, vexado como se tivesse sido ele o responsável pela leucemia. Não queria que ninguém soubesse para não ter que aguentar o falatório e os olhares de piedade e comiseração. Olhares que o acusavam do crime de não ter cuidado bem de si mesmo.
A notícia virou de ponta-cabeça a ideia que até então tinha tido de sua vida. Naqueles minutos de silêncio, achou que ficou com câncer porque se amargurou, porque não teve o sucesso que deveria ter tido, porque represou suas emoções, porque se deu uma vida infeliz – porque, enfim, não soube cuidar de si mesmo. Sua alma estava envergonhada, e vergonha era tudo o que sentia. A notícia do câncer veio carregada de significado. Frustrações e amarguras há muito esquecidas adquiriram relevo extraordinário, e momentos felizes do passado perderam o brilho. O câncer era mais do que uma doença séria – era um atestado dos maus-tratos, das torturas a que havia submetido sua alma, uma espécie de punição tardia de um deus vingador.
Passou-se algo similar comigo depois da prisão. Eu havia escolhido o caminho que me levara à tortura por decisão própria. Não soubera medir as consequências de meus atos; a quem culpar pelas consequências a não ser a mim mesmo? Para muitos, a militância revolucionária havia sido um momento heroico, algo engrandecedor que lhes renderia dividendos o resto da vida, um motivo de orgulho por ter contribuído para um futuro melhor para o país, um atestado de seu altruísmo cívico. Eu não me sentia assim. Para mim, tinha sido algo errado do começo ao fim, e não havia quem culpar pela encrenca na qual havia me metido, a não ser eu mesmo.
Tal como vítimas de câncer, também reinventei minha vida a partir do trauma. Por que não havia desistido da luta revolucionária a tempo? Pelo mesmo motivo pelo qual não conseguira terminar um namoro mesmo quando não gostava mais da namorada. Minha alma dirigia um táxi que ia a qualquer destino que o passageiro pedisse, menos ao meu. E eu ainda por cima aceitava como pagamento apenas o elogio de ser um motorista confiável e pontual."

Trecho de Rakudianai memórias de Persio Arida  (leia mais    aqui    )

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