maio 02, 2011

Chegou o outono?

"É duro ser cronista aos ventos do El Niño

Ah, os bons tempos em que Rubem Braga se punha dentro de um reboque do bonde Praia Vermelha, entrava na Marquês de Abrantes com destino a Botafogo, e naquele exato momento lhe batia no rosto uma folha seca trazida pelo vento.
Rubem se dirigia ao passageiro do lado e perguntava: “O senhor pode ter a gentileza de me dar as horas?”.
No dia seguinte, num jornal da capital, lá estava o registro de que às 13h48m daquele dia de abril, depois de muito esperar, finalmente havia chegado o outono e era quase obrigatório, para curtir a temporada, que todos se pusessem em novo estado. “Ponhamo-nos melancólicos”, encerrava Braga.
Os cronistas modernos, além das limitações do estilo, sofrem também com a troca do bonde pelo trem do metrô. No rosto, só o ar refrigerado. Ficou impossível sentir que o vento do outono vem da enseada e dirige-se apressado ao Centro, ainda ocupado pelo verão. De dentro do bonde, feliz também com a possibilidade de poder roçar o joelho no joelho da moça em frente, Braga percebia no outono que chegava uma estação ao jeito carioca. Ele soprava quase morno, cheio de folhas secas saltitantes, mas sem violinos de Verlaine. O outono do Rio carregava, sim, o som de tosse, o espirro da gripe, e certamente colheres do milagroso Vinho Reconstituinte Silva Araújo.
O cronista sentia tudo isso numa simples folha que lhe vinha ao rosto. Depois passava meio sem sentido por um edifício com uma construção paralisada há anos, o que lhe dava mais uma linha, e lá seguia o cronista com aquele olho de homem solto no mundo, preso apenas ao desfrutar da vida — e pronto. Vinte minutos depois de iniciada a viagem, Rubem Braga tinha mais um texto antológico, “Chegou o outono”, para a sua coleção.
O descontrole ambiental faz com que não se percebam mais as mudanças de estações na Marquês de Abrantes. Abril já vai ao fim e faz um calor do cão. As moças, por sua vez, protegidas pelos ventos do politicamente correto, estão trancadas no vagão feminino para que ninguém lhes roce o joelho e, como na história da descoberta do fogo, dessa fricção surja a centelha que acenderá a criação de uma crônica.
É duro ser cronista aos ventos do El Niño.
Eu tenho procurado o tapete que vi num outono da infância, de folhas vermelhas das amendoeiras da Praça Paris, para forrar uma crônica de agradecimento ao simpático júri do jornal “Capital Cultural”, da Lapa, que concedeu aos meus suspiros o troféu Amigo do Rio Antigo. Em vão. Tapete não há mais.
As amendoeiras foram decretadas inimigas públicas da ordem municipal porque suas raízes destroem as calçadas e as folhas entopem os bueiros. Agora, quando morre uma amendoeira, planta-se árvore de outra espécie — e o que nos era memória, os burocratas, que nunca passaram a infância discutindo o gosto superior da amêndoa vermelha sobre a branca, empurram com um carimbo para o cemitério das tradições inúteis.
Eu tenho procurado o outono, essa nostalgia dos grandes cronistas que escreveram nos jornais da cidade, para um discurso de agradecimento carregado do clima de Rio Antigo. Necas de pitibiribas. Do mesmo jeito que o frapê de coco no verão, os Jogos da Primavera em setembro e a japona no inverno, temo que vá ficando para o Almanaque Capivarol o súbito vento suave que fazia a moça cobrir o arrepio dos pêlos do braço com um casaquinho
de Ban-Lon vinho.
O outono não dá música, foi sempre território da crônica que passeia por sua temperatura dissonante. O verão peca pelo excesso de cores, a primavera exagera com seus buquês e o inverno traz o abrigo de um útero de lã. Eu prefiro as nuances mornas do outono — mas por onde anda?
Semana passada, encontrei na rua uma amiga, dessas que os anos adornam com sábia delicadeza. Reparei em seu vestido que ela também não havia desistido e aguardava a chegada a qualquer momento da estação anunciada há mais de mês pelo calendário. Minha amiga usava um vestido bem fechado na frente, mas atrás franqueava as costas num decote que deixava contar todas as sardas conseguidas ao sol de seus muitos verões. Achei sensual seu jogo de frio-e-quente, a plena compreensão do outono, mesmo sabendo que era apenas um pensamento positivo dela.
Ademais, minha amiga acabou de tatuar a palavra “Alegria” num dos pulsos e o outono é estação de certa gravidade existencial. Ninguém vibra euforia em abril e maio. As possibilidades de se encontrar o grande amor diminuem. É tempo de gente madura, de sombras prolongadas, de não se impressionar com o sol que está fazendo porque ele pode ser do tipo frio. Acostuma-se a viver com menos calor. O mundo aparece lá fora através das gotas de orvalho se desfazendo na janela.
Outono, pelo menos para os cronistas do Rio Antigo, é essa súbita vontade de puxar nostalgia, de forrar o corpo com torrada Petrópolis na Colombo. A natureza não vai trazer tempestades, cairá sobre os homens um desejo silencioso de que a vida seja posta menos vã, com mais sossego e nuvens vagabundas para se ficar olhando no fim da tarde. Ninguém programa revoluções para outono — e isso tudo é bom. Eu vou pegar meu bonde para a Praia Vermelha. Quero ter a exclusividade do primeiro vento da estação, aquele que não planta de volta as folhas secas da Praça Paris, mas traz a inspiração dos grandes mestres para que os novos cronistas continuem escrevendo enquanto caminham pela memória da sua cidade — e possam começar sem pudor um parágrafo com a palavra “ademais”. Tão crônica de outono."
Joaquim Ferreira dos Santos

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