abril 20, 2011

O novo setentão

"Para festejar o aniversário de Roberto Carlos
Ter setenta anos era sentar no banco mais escondido da praça, pedir que alguém dobrasse a barra do pijama para evitar o barro molhado e ficar ali, jeitão meio perdido, olhando a multidão de enfermeiras cuidar de outros setentões, mas já sem saber diferenciar exatamente quem eram as enfermeiras e quem eram os setentões, porque era idade muito avançada no tempo e a melhor tática para enfrentá-la era congelar assim, quieto no canto, encolhido dentro do casaco, sequer piscar, porque alguém lá em cima poderia notar que você havia sido esquecido na chamada e gritar malandramente, “ei fulano, sobe aqui um instantinho”.
Ter setenta anos era uma raridade estatística, um prato cheio para os humoristas tirarem sarro e um dos mais deletérios era o professor Aquiles Arquelau, o personagem do Agildo Ribeiro no programa “Planeta dos homens”, um velhinho de cabelo amalucado que a qualquer pergunta só respirava fundo e dizia “ah, a Bruna Lombardi”, mas de um jeito assim de quem definitivamente não manifestava qualquer desejo de confraternização com o sexo oposto, já não associava mais o nome à pessoa, e repetia “ah, a Bruna Lombardi” apenas como manifestação de que chegara aos 70, sim, mas, como podiam ver, continuava vivo a ponto de respirar e conseguir dizer “ah, a Bruna Lombardi”.
Ter setenta anos era para a geografia humana o mesmo que dobrar o Cabo da Boa Esperança e entrar naquela zona de suspense que os filmes sempre apresentam nevoentas, ai que medo, um fim dos tempos em que o monstro terrível logo daria as caras, era um Triângulo das Bermudas no mar escuro da existência onde o dono da tal idade já não é registrado pelos radares de circunavegação e segue em frente por sua conta, risco e teimosia, pois já não há o que fazer de útil neste plano terreno, perdidas que estão as pernas para correr, encolhidos que se encontram os braços para abraçar, e definitivamente chegara a hora de tirar os olhos das bússolas que não funcionam e entregar o leme nas mãos da santinha que a tudo assiste, coitada, também apavorada, sem nada mais poder rezar, pregada que está na caixinha de plástico do escapulário.
Ter setenta anos era o pé na cova, o Jesus está chamando, o momento em que o Waldir Amaral gritava lá da cabine celestial o seu terrível “O relógio maaaarca” e ficava claro, pela artrite, pela artrose e certa falta de ar no arco das costelas, que o jogo estava com o tempo regulamentar esgotado, passava-se aos dramáticos descontos dados de acordo com a generosidade do Senhor Juiz, mas a Ele também não se pedia muita coisa, para quê?, pois já fracassava a capacidade de conjugar verbos fundamentais como amar, trabalhar, lembrar, até mesmo os amigos eram nos tempos passados, e a vida futura parecia apenas um caminhar com os tubos conectados aos pulmões enquanto, ao fundo, na vitrola ouviase Simon and Garfunkel naquela balada melancólica que dizia ser setenta anos uma idade muito estranha, de gente compartilhando o mesmo banco de jardim.
Ter setenta anos era a hora de pedir a saideira, o momento tenso em que o contra-regra começava a fechar a cortina do grande espetáculo da vida, o toque da enfermeira de que só restava o último comprimido da pílula de vida do Dr. Ross, era aquele segundo de silêncio que antecedia o “boa noite” do Cid Moreira, mas tudo isso é lembrado aqui apenas como um bambolê nostálgico, um Barbosa babão do Nei Latorraca no “TV Pirata” e um bonde de São Januário de museu, porque a nova realidade dos tempos é que Roberto Carlos, dia 19 de abril, e Gil e Caetano em 2012, estão chegando lá, e só os velhacos gritariam “velhotes” diante desses senhores que — graças ao rock and roll na veia, musculação três vezes por semana, o avanço dos laboratórios e a busca renovada da felicidade amorosa — deram um outro perfil aos setenta anos e, pela maneira que criam no palco, pela maneira que abraçam novas paixões, sugerem que setenta anos hoje é ter muito fôlego para ler parágrafos tão longos como estes, é ter muito jogo pela frente, muita bala na agulha e muita tinta azul para reescrever a vida com a caneta Parker de quem sabe das coisas".

Joaquim Ferreira dos Santos

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