março 21, 2011

Transformando dor em mel



Num ótimo ensaio publicado no Guardian em 2007, Zadie Smith disse algo interessante sobre T.S. Eliot, segundo quem a personalidade do escritor não interessa — ou, num resumo mais grosseiro, texto e autor são inconfundíveis. Pergunta Zadie: será que Eliot não dedicou seu enorme talento para defender essa tese, entre outras razões, porque em sua biografia constava o fato de ter abandonado a mulher num hospício?
Para 98,5% dos ficcionistas — margem de erro para baixo e para cima: 1,5% —, a pergunta é retórica. Todo livro é autobiográfico, não apenas no sentido literal de incluir cenas realmente acontecidas, com os devidos disfarces e perfumes, mas de forma indireta e também óbvia: não existe criação sem memória, e memória é autobiografia. A descrição de um lugar só pode ser feita a partir de pedaços recombinados, mesmo que em negativo, de lugares onde estivemos. A descrição de uma cor alude a experiências plásticas e sensoriais pré-existentes, como quando W.G. Sebald batiza um certo “cinza-Lúcio”, ou quando uma cega ouve — num velho filme com Cher e um garoto de cabeça defeituosa — que o branco é algodão entre os dedos, o vermelho é algo que queima e assim por diante. E o que é o estilo literário senão a reprodução, em sintaxe, ritmo, lógica e ideias, da maneira como um autor pensa — ou seja, de como é?
A separação entre vida e obra inexiste não apenas nos livros. John Updike dizia que o escritor só tem experiências “reais” durante a infância e adolescência. A partir do momento em que percebe que o sofrimento pode ser matéria ficcional, deixa de senti-lo em sua totalidade, como quem tem tudo a perder, e aí não é muito difícil transformar “dor em mel”. Como a velha mitologia romântica nos faz acreditar que o mel será mais doce se houver mais dor, em alguns casos — juro que estou falando em tese… — o sofrimento passa a ser quase desejado.
É sempre uma tarefa ingrata, de qualquer forma, defender a autonomia dos próprios personagens. Não só diante de certo público — imagine descrever um chefe de família tirano ou um relacionamento terrível e depois ser lido pelo pai e pela namorada —, mas diante de si mesmo. Como tornar crível um narrador amoral? Um psicopata? Um assassino ou estuprador? Certamente não basta ler livros, ver filmes e fazer entrevistas sobre o tema. Não basta reproduzir ideias alheias, quando não lugares-comuns, sobre tipos tantas vezes repisados na ficção. É preciso botar algo de si nesse personagem, algum sentimento que combine com seu discurso e atitudes. Aos olhos de qualquer leitor experiente, é essa matéria escura, incômoda e particular, nascida não por geração espontânea, e sim por uma experiência que a molda e sustenta, que diferencia o escritor de verdade da imensa maioria dos seus pares.
Há um conto de David Foster Wallace em que o personagem pergunta algo como: podendo ou não ter sobrevivido a um grande trauma, e depois passado o resto dos anos conseguindo vantagens em torno dele — publicando memórias de sucesso e coisas assim —, o que você escolheria? Uma vida banal sem esse sofrimento passageiro, mas enriquecedor em termos existenciais e materiais a longo prazo, ou o contrário? No fundo, e dados os devidos descontos morais — o conto fala sobre campos de concentração, e claro que DFW tem uma visão crítica/irônica sobre a fala do seu protagonista —, o dilema de todo escritor é esse. Ou melhor, não é: ao escolher essa carreira sublime, ingrata e muitas vezes patética, e tendo a mínima vocação para ela, sua resposta terá sido dada desde sempre.
 Michel Laub no Blog  da Companhia das Letras 

Nota: As meninas de Diego Velasquez, quadro em que o próprio pintor aparece retratado na cena. 

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