março 15, 2011

Deus é verde

"O TERREMOTO de Lisboa de 1755 não foi apenas um terremoto. Foi uma trágica, devastadora e assaz perfeita confluência de desastres. A terra tremeu. O fogo veio a seguir e devorou as casas. Finalmente, o mar devorou a cidade.
Foi então que a inteligência europeia, com Voltaire à cabeça, formulou uma questão básica sobre a matéria: como é possível que Deus tenha permitido semelhante barbaridade? As palavras de Voltaire correram a Europa e "Lisboa", a palavra, ganhou ressonâncias malignas que só "Auschwitz" acabaria por ter no século 20.
Mas a inquietação de Voltaire não foi a única. Como explica Susan Neiman num brilhante tratado sobre a história filosófica do mal ("Evil in Modern Thought", Princeton University Press, 358 págs.), o terremoto de Lisboa não se limitou a ser pasto para o racionalismo dos "philosophes". O terremoto, em suma, não mostrava apenas ao mundo a crueldade de Deus ou até, no limite, a Sua inexistência.
Para os anti-iluministas, provava o contrário: a justiça e a onipotência divinas sobre uma Humanidade corrupta e pecadora. O terremoto era um castigo de Deus sobre a licenciosidade dos homens.
E nem mesmo as diferentes sensibilidades religiosas da época escaparam às suas guerras privadas. Para os jansenistas, era um castigo sobre uma "cidade jesuíta" onde a Inquisição ainda funcionava. Para os jesuítas era o oposto: um castigo divino precisamente porque a Inquisição não funcionava com a dureza e a regularidade aconselháveis.
O italiano Gabriel Malagrida foi um dos rostos mais conhecidos desse fervor religioso e, um ano depois do terremoto, ainda pregava aos lisboetas que se arrependessem dos seus pecados e se preparassem para o Juízo Final. O terremoto do ano anterior fora, digamos, um mero aperitivo. O prato principal ainda estaria para vir.
O mundo acabou, é certo. Mas apenas para Malagrida, queimado pouco depois como herege num apropriado auto-de-fé. Conta a mesma Susan Neiman que a morte de Malagrida marcava também o fim de uma era que via nos "males naturais" uma expressão dos "males morais". Nas clássicas palavras do marquês de Pombal, a única resposta possível perante o terremoto era "enterrar os mortos e alimentar os vivos". Meditações teológicas para que, quando havia pestes e fomes a evitar? Os mortos foram enterrados. Deus também: os "males naturais" passaram a ser imprevisíveis, contingentes, inexplicáveis. E sobre eles passou a repousar um silêncio de resignação e horror.
É esse silêncio que a maioria observa com as imagens do Japão e a sua particular confluência de desastres. Nada há a dizer, nada há a explicar, exceto enterrar os mortos e cuidar dos vivos.
Mas há quem resista. Leio na imprensa do dia que o presidente do European Economic and Social Committee, órgão consultivo da União Europeia com certa importância "científica", aproveitou o momento para questionar se a catástrofe japonesa não seria um resultado do aquecimento global ou, como hoje se diz e uma vez que o mundo deixou de aquecer desde inícios do século 21, das "alterações climatéricas". Nas palavras do preclaro Staffan Nilsson, talvez a natureza esteja a falar conosco. Não deveríamos ouvi-la?
Não foi caso único: jornais e televisões foram invadidos por iguais interrogações, normalmente vertidas por políticos e fanáticos da causa ambientalista. A natureza, na visão dessa gente, não pode ser imprevisível, contingente, inexplicável. Como, na verdade, sempre foi ao longo da história. Isso seria um insulto para a nossa patética soberba.
Se o Japão ficou parcialmente destruído, existe uma causa última. E na impossibilidade de a causa ser um deus monoteísta, talvez as respostas se encontrem num deus panteísta: uma mãe natureza indignada com os abusos dos seus filhos, que resolve assim puni-los de forma brutal para que eles deixem de cometer pecados contra ela.
Enganam-se os que pensam que o espírito de Malagrida morreu nas chamas da Inquisição. Os fanáticos da causa verde apenas pintaram Deus com outra cor; mas a atitude mental é a mesma: a atitude de quem explica os "males terrenos" como um castigo dos céus. Ou, melhor dizendo, da Terra".


JOÃO PEREIRA COUTINHO

Um comentário:

Valéria Santos disse...

Não acredito em castigo divino, mas na lei natural que acomete seres inanimados ou não, tudo que é "utilizado" está fadado ao desgaste e a substituição. Não importa se utlizemos o planeta de forma indevida ou não, evidente que devemos procurar agir da maneira mais correta possível, o certo é que assim como compramos um carro novo em folha que nos será útil para diversas atividades, com o tempo e o uso ele se desgastará até que um dia havemos de substituí-lo, uma casa por melhor e mais suntuosa que seja, mesmo submetidas a todas as reformas possíveis um dia ruirá, nosso corpo "máquina perfeita" desenvolve-se de forma magnífica, porém haverá um dia que em que sucumbirá, extingue-se cessa-se a vida e assim como nosso planeta não poderá ser substituído.