fevereiro 25, 2011

A visita da velha senhora

"NA SEMANA passada, escrevi na página A2 da Folha uma crônica intitulada: "Olha quem vem lá!".
Sorrateiramente, pouco a pouco, como quem não quer nada, uma velha conhecida do povo brasileiro começa a dar sinais de querer voltar a nos encher o saco e esvaziar nossos esforços de ir para frente.
Ainda não foi assumida plenamente "senatus populusque", ou seja, pelo governo e pelo povo, mas os entendidos de sempre começam a usá-la para, entre outras coisas, frear o valor do salário mínimo.
Os pessimistas, entre os quais me incluo, temem que ela seja irreversível, talvez não chegue aos patamares do passado, mas bagunçará de forma irreparável a vida econômica e social da nação.
Não sei se estaremos preparados para combatê-la em regime de prioridade máxima, tal como foi feito em tempos de Itamar Franco e FHC. Custou a dar certo, mas deu.
Aos poucos também, o brasileiro começou a descobrir que não é um moleque à margem da história. É um cidadão. Às armas, cidadãos -em francês é mais empolgante.
Fizemos nosso percurso na história sem quase apelar para o derramamento de sangue. À falta de uma Bastilha de pedra, transferimos para supermercados e açougues as nossas bastilhas pessoais.
Tivemos ainda recentemente os tempos do ame-o ou deixe-o. Tivemos a época do milagre brasileiro, em que a bandeira nacional era esfregada em nossas caras e os números de nosso progresso eram impressos em adesivos e flâmulas: O Brasil Grande.
"Eu te amo, meu Brasil, eu te amo: pra frente, Brasil, ninguém segura este país." Numa palavra, quem não estivesse satisfeito, que fosse embora. O último desligasse a luz do aeroporto.
Evidente que não há termo de comparação entre as duas épocas. Apenas o clima de agora começa a parecer suspeito.
Lembro da época do Plano Cruzado, num mercadinho de Belo Horizonte a plebe descobriu que alguns produtos não estavam alinhados à tabela do governo.
O gerente foi preso e levado à viatura estacionada à porta do mercadinho. O povo indignado queria linchá-lo, uma senhora tirou um sapato do pé e agrediu o criminoso.
Tudo porque descobriram que algumas latas de sardinha tinham preço tabelado e outras, não.
Afinal, a culpa da inflação, de nossas misérias -que são muitas- não passam necessariamente pelo preço das latas de sardinha.
Injustiça social, reformas, má distribuição de renda, modelo econômico traçado pelos interesses das elites conservadoras -tudo isso tem culpados certos e sabidos, mas nenhum deles é gerente de mercearia de Belo Horizonte.
Os governos mais recentes deram um grande golpe, mexendo com os adjetivos de nossos problemas, mas sem tocar nos substantivos.
É o caso do desenvolvimento sustentável. No mais, promoveu uma bem-sucedida campanha cívica e deslocou a cólera e a frustração de gerações de brasileiros para alvos errados.
Enquanto nos comemos uns aos outros, brigando nos níveis mais baixos da pirâmide social, a cúpula dessa pirâmide procede a seus movimentos de acomodação, dentro de uma ordem econômica e social que continuará produzindo ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres -embora todos, pobres e ricos, possam comprar latas de sardinha por preços mais baixos e unificados.
Não integro aquela parte da opinião pública que insiste em considerar o povo brasileiro inteligente, lúcido, bacana, cordial, esperto e destinado a todo o poder e glória.
Tenho a impressão de que somos um povo cristão demais, obra talvez dos jesuítas dos primeiros tempos coloniais, um povo que quanto mais apanha menos aprende e mais oferece a cara para nova bofetada.
Considero um milagre que tenhamos feito uma trajetória ascendente no plano histórico, até certo ponto dou razão ao hino que nos declara deitados eternamente em berço esplêndido.
Na última campanha eleitoral, falou-se muito em aborto e menos em inflação.
Somente agora, com os primeiros passos do novo governo, a velha senhora que tanto nos maltratou começa a ameaçar uma visita indesejada, que muito prejudicará ou tornará insustentável o crescimento prometido ao povo brasileiro."

CARLOS HEITOR CONY 

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