fevereiro 23, 2011

A outra chave de casa

"SILENCIOSAMENTE, enquanto todos prestavam atenção nas últimas flores das tecnologias de consumo pessoal, uma mudança enorme aconteceu. Praticamente ninguém se deu conta dela, por mais que afetasse profundamente boa parte das dinâmicas sociais. Suas consequências para o comportamento dos seres urbanos são imprevisíveis, mas acredito que sejam bastante sérias: falo do desaparecimento da fronteira entre os territórios de "casa" e "rua".
Essa fronteira foi erguida no ocidente ao longo dos últimos séculos, quando as famílias que se diziam civilizadas separaram, aos poucos, os bens públicos dos privados. Foi uma atitude estranha, egoísta e contraproducente, pois demandava infinitas cópias de cada bem, mas que mesmo assim funcionou tão bem que mesmo hoje é raro alguém perguntar o porquê de tão poucos bens coletivos. Ora, porque sim. E pronto.
A internet começou a romper a barreira artificial ao entregar o que a televisão sempre prometeu: colocar, efetivamente, o planeta dentro de casa. Por mais importantes que fossem as notícias da telinha, elas sempre diziam respeito aos "outros", àqueles que, "lá fora", faziam o mundo acontecer.
Aos poucos, home banking, e-commerce e tantos outros nomes em inglês de que mal se ouvira falar no final do século passado mudaram a relação de poder e passividade. Quem tinha acesso à rede passava a ter, de casa, uma alavanca e um ponto de apoio para mover o mundo. O muro começava a ruir.
Com a banda larga, o processo se acelerou. Tecnologias como P2P, streaming e computação em nuvem permitiram o compartilhamento de milhões de documentos, lícitos ou não, via Google, Flickr, YouTube, BitTorrent e tantos outros. Esse conteúdo, por não estar aparentemente no computador de ninguém, foi parar no computador de todos. Sem que se percebesse, a inteligência voltava a ser coletiva.
As mídias sociais derrubaram de vez a divisão. Até então, os sistemas de comunicação pessoal eletrônica -e-mail e mensageiros instantâneos como MSN ou Skype- não eram muito diferentes de um telefone ou um correio anabolizados. O que acontecia neles ficava por ali e não era da conta de ninguém.
À medida que blogs, YouTube, Orkut, Facebook e Twitter passaram a dar a qualquer indivíduo um grau de exposição antes reservado às celebridades, as portas e janelas de todos foram abertas para multidões de voyeurs declarados.
Quem está conectado em casa passou a estar, ao mesmo tempo, na rua. E vice-versa. Onde quer que se esteja, os amigos sempre estão por perto. Muitas vezes, perto demais. E nem são tão amigos assim.
O celular, em especial o smartphone, se tornou a nova chave de casa. Com ele é possível trazer o mundo inteiro para dentro de um ambiente privado, ao mesmo tempo que se possibilita o compartilhamento de experiências pessoais com o mundo.
Aquele que surgiu como um telefone móvel é hoje um aparelho de identidade, contato e inclusão digital. Ele ainda é tão importante quanto o cartão do banco e aquele outro objeto de metal, pesado e desconfortável, que não presta pra nada além de abrir uma porta de madeira que fecha uma cela contemporânea. Mas não demorará para que os substitua".


LULI RADFAHRER 

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