fevereiro 09, 2011

Napa Valley

"ESTOU À TOA POR AÍ, pensando na morte da bezerra, quando sou abalroado por um cheiro: no ato, volto a lugares e momentos que nem me lembrava de existirem. Numa loja de discos, surge o odor de um sofá, na antiga casa da minha avó; ao cruzar um gramado, sou catapultado às férias na praia, lá pela terceira série; uma mulher senta ao meu lado, no metrô, e seu perfume me traz à memória uma menina que beijei no playground de um prédio, numa noite em 1993 - chego até a sentir uma brisa da paixão adolescente.
Certas vezes, contudo, o aroma não permanece em minhas narinas tempo suficiente para o cérebro encontrar sua origem nos velhos arquivos, e sinto a consciência formigando, aflita, como se tivesse atravessado a cidade atrás de algo muito importante e, então, subitamente, esquecido o que fora buscar.
Outro dia, li um artigo no qual um neurologista explicava essa linha direta do olfato com a memória. Ao longo de milhares de anos, foi o nariz quem nos avisou se a comida estava estragada ou boa para comer.
Interpretar corretamente e lembrar-se das informações passadas por esse oficial aduaneiro, instalado na fronteira mais ao norte de nosso ser, fez com que alguns tenham conseguido sobreviver e transmitir seus genes, enquanto outros ficaram pelo caminho, abatidos por mariscos vencidos e outras fétidas arapucas.
É curioso, no entanto, que o olfato tenha as chaves da memória, mas a recíproca não seja verdadeira. Pense numa casa onde já morou e as imagens surgem na sua cabeça. Os odores, não: é preciso estar diante deles -ou de outros parecidos com eles -, para apreendê-los.
Tentar lembrar-se de um cheiro é como querer ver um objeto pendurado na lateral do chapéu. Você vira a cabeça para encará-lo, mas ele se move junto, tão perto, tão longe.
Por mais que não consigamos trazer os cheiros à consciência, em algum lugar, nas catacumbas do nosso cérebro, eles estão inscritos, em fórmulas químicas ou sei lá que obscuros códigos neuronais. E se lá residem, fico a imaginar se um dia não aparecerá um cientista, um Champollion de jaleco, capaz de decifrar tais hieróglifos.
Aí, então, da mesma maneira que um médico faz nossa perna levantar ao dar uma batidinha no joelho, os neurologistas conseguirão, com estímulos elétricos, químicos ou coisa que o valha, trazer à consciência os cheiros e as memórias a eles atadas.
Como DJs que escolhem sequências de músicas, esses ludorrinoneurologistas elencarão um cheiro atrás do outro, proporcionando-nos viagens sensoriais que deixarão no chinelo a música, a literatura, o cinema, o LSD e o Rivotril. Deitados em pufes, em clínicas que parecerão casas de ópio high-tech, iremos dos odores dos lençóis da última noite aos do primeiro berço.
Reencontraremos pessoas queridas que perdemos, para a vida ou para fora dela, ao sentir os cheiros de seus colos ou abraços. Passearemos entre conquistas e pomares, pães quentes e cidades, manhãs na praia e noites no campo, até terminar na memória olfativa mais antiga, intensa e apaziguante que trazemos dentro de nós: a pele de uma mulher colada ao nosso rosto, o aroma doce de seu leite e, ao fundo, talvez, um leve cheiro de xampu". 
ANTONIO PRATA 

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