janeiro 18, 2011

O mecanismo da negação

MINHA CABEÇA entrou em parafuso quando soube, na quinta-feira, que a casa de um amigo na região serrana do Rio havia sido varrida pela tempestade do dia anterior, matando uma família a quem ele a tinha alugado. Imagino, com imensa dor, a dele.
O que aconteceu comigo?
Por acaso eu não sei que os verões trazem enxurradas e, com elas, riscos de morte?
Que grande surpresa é essa?
É o rompimento de um importante filtro do cérebro, algo como um "firewall" de computador, um dos principais mecanismos de defesa que nos permitem viver e funcionar, chamado negação.
Ai de nós se não houvesse a negação. Quer experimentar? Você vai morrer, não?
Pode ser hoje, por assalto, infarto. Aquela dor na barriga?
Pode ser câncer. Vai viajar?
Para Paris? Lembra o voo da Air France? Onde está seu filho? Tem certeza? Ele está dirigindo? Ihh...
E que tal ser velho pobre?
Seus filhos vão interná-lo num asilo, num depósito de moribundos, babando numa cadeira, olhando uma televisão preto e branco, enquanto ninguém troca o fraldão?
Quem pode viver pensando nessas coisas? É aí que entra o antivírus negação. Ele permite que o cérebro funcione sem travar. "Minha filha dirige bem, pode voltar às 3h que não vai acontecer nada."
"O transporte aéreo é o mais seguro, muito mais do que atravessar uma rua."
Ou, como nem poderia passar pela cabeça do meu amigo: "Temos esse terreno há 70 anos e ele nunca foi área de risco. Por que me preocupar agora?".
Nem poderia, nem passou.
Ele, sem saber, estava usando um modulador da negação chamado probabilidade.
Não há nada garantido nessa vida. Eu moro numa vila. Passam helicópteros por cima. Quem me garante que um dia desses... Ninguém, certo? Mas as chances são pequenas de eu acordar com um aparelho no telhado.
Por outro lado, se alguém cruzar a rua fora da faixa com os olhos vendados, suas chances de morrer serão altas, mesmo que ele diga que Santa Caropita o protege e que nada vai acontecer.
Ele estará exagerando na negação e desconsiderando as probabilidades. Ou seja, estará prejudicado no software de bom funcionamento.
Em outras palavras, o pobre coitado está com algum parafuso solto ou andou bebendo água que passarinho não fuma, ou coisas que tais, capazes de provocar desarranjo no delicado equilíbrio cerebral: avaliar a realidade e saber o quanto é necessário levá-la em conta e o quanto é necessário descartá-la.



FRANCISCO DAUDT, psicanalista e médico

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