dezembro 07, 2010

O homem que lia Adélia Prado

          "O acaso me instalou ao lado de um homem de turbante, que cruzava as pernas de modo desleixado, quase impedindo minha passagem. Era, porém, a única poltrona vaga. Ele nem se importou em se acomodar melhor em sua cadeira. Devorava um livro de nome intraduzível. Esforcei-me para chegar ao nome do autor: Adélia Prado. 
          Por que o destino me empurrara justamente para o lado do homem que lia Adélia Prado? Em vez de buscar causas concretas, que não existiam, deixei que minhas ideias flutuassem e me conduzissem, livremente, ao que eu buscava. Meia-hora antes, a caminho do aeroporto, o balanço do táxi me causou um leve enjôo. "Uma crise de labirinto justo agora?" _ as sete horas de vôo até Guarulhos me ameaçavam. 
          Antes de deixar meu hotel em Oranjestad, eu devia ter tomado um comprimido de --- como era mesmo o nome do remédio? Levei um bom tempo perseguindo o nome do medicamento prescrito por meu otorrino, que eu carregava em algum lugar da mala. Se é que eu não o deixara em alguma gaveta do quarto. Sim, antes do check in eu devia encontrar o remédio, para me prevenir de algum malestar mais forte durante o vôo. Mas como procurar uma coisa cujo nome me escapava? 
           Tentei, tentei, até que desisti. Então, já na sala de embarque, a mala já despachada encerrando qualquer possibilidade de cura, sentei-me ao lado do homem que lia Adélia Prado. Sem tirar os olhos do livro, ele me perguntou, em um inglês tão sofrível quanto o meu: "O senhor é sacerdote?" 
          Só então notei que eu vestia calça e camiseta pretas, mas o tênis com bordas em azul pavão desmentia a hipótese do sacerdócio. Talvez ele não tivesse reparado em meus pés. Mesmo assim: por que eu seria um padre? "Se é, o senhor deve conhecer A-dé-li-a Pra-do", soletrou, tornando o nome da poeta quase incompreensível. Sem dizer que sou brasileiro (mas ele saberia que Adélia é brasileira?), aceitei a provocação: "E por que eu deveria conhecê-la?" 
          Mansamente, em seu inglês tenebroso, o homem me explicou, então, que Adélia Padro é uma santa, que vive "em algum lugar da América Latina". Com piedosa convicção, ele reforçou: "Creio que mora em um pequeno lugarejo chamado Cidade do Divino". Claro: Divinópolis. Não cheguei a entender qual livro de Adélia o homem lia, e nem em que língua _ provavelmente o hindi. Mas a leitura dos poemas o transfigurava, isso era certo.

          "Essa mulher e seus poemas me curaram". Sofreu de uma doença misteriosa, que os médicos atribuíram a um novo virus. Esteve internado por longas semanas, chegou a fazer uma cirurgia (não entendi de que tipo), tudo em vão. Um dia, recém chegada do Sri Lanka, uma prima lhe trouxe de presente um livro que comprara, às pressas, no aeroporto de Mumbai. Aquele livro: os poemas de Adélia Prado. 
          O livro o curou. Os médicos não souberam explicar como, tanto que atribuíram o caso a alguma coincidência nefasta, dessas que só desmerece os esforços da medicina. Depois de pesquisar durante uma noite inteira no Google, a prima distante lhe assegurou que lera poemas sagrados, e que o contato com as palavras místicas de Adélia fulminaram o virus. 
          Imediatamente, sem relação alguma com o que o homem me dizia, me veio à cabeça o nome do medicamento que eu tanto procurava: "Stugeron". Mas agora era tarde: o embarque para São Paulo já se iniciara e minha mala fora engolida por uma esteira. Ao entrar no avião, a sorte me acomodou várias filas à frente do leitor de Adélia. Continuar aquela conversa me esmagaria. Não podia negar, porém, que, ao desviar a atenção de meu remédio e me concentrar no homem, só assim o nome do medicamento me voltou.
          Era um aparecimento tardio e inútil _ mas meu método se mostrara, uma vez mais, eficaz. Imbatível. Mais uma vez, precisei pensar em outra coisa para chegar à coisa que buscava. Mais uma vez, as coisas não estavam onde eu pensava que estavam. Sim: no mundo humano, as coisas estão sempre em outro lugar. Não há mordomo, ou faxineira, que controle isso.
          Também o homem de turbante precisou ler os versos de Adélia para se curar _ o que não garante nenhuma prescrição médica de seus livros. Ele precisou acreditar que Adélia é uma santa, e não uma escritora. Precisou saltar até a Cidade do Divino que, mesmo inexistente, o acolheu e consolou. Precisou ler Adélia pelo que ela, em definitivo, não é. Preciso disso tudo _ precisou imaginar, precisou embrenhar-se nos labirintos da ficção _ para, enfim, reencontrar as próprias forças.
          Pensei que sua aventura com os poemas de Adélia Prado _ assim como minha busca do nome "Stugeron" _ ilustra como espantosa nitidez a potência da literatura. 
        Não que a literatura salve, porque não salva. Nada nos salva. Ainda assim, ela é uma espécie de estrada vicinal, mais arcaica e fugidia, que nos traz a possibilidade de tomar distância de nós mesmos e, com isso, nos renovar.
          Ao ler um livro de poemas (por exemplo: os magníficos poemas de Adélia), temos a chance de, enfim, abandonar nossas certezas e, ato contínuo, nos redescobrir. Não se trata, porém, da panacéia do novo, ou da salvação pela transformação. Kafka sabia disso muito bem: não nos tornamos insetos, somos insetos. É uma descoberta mais simples, mas também mais difícil: trata-se só de chegar de volta a si.
          Não consigo imaginar o que o homem que lia Adélia Prado fazia em Aruba com aquela vestimenta pesada e aquele complicado turbante. Talvez tenho tirado alguns dias de férias (como eu), para se recuperar de vez de seu mal (como eu me recuperava de um estresse). Pelo sim, pelo não, levou consigo o livro milagroso de Adélia. E _ como um bebê que se agarra a sua chupeta _ já não conseguia largá-lo, ou se desmancharia.
          Em definitivo, não acredito em milagres. Tenho grande afeto por Adélia Prado justamente porque ela é uma mulher que escreve não "apesar de", mas " com" suas fraquezas. É uma corajosa poeta da imperfeição. Trabalha com o que tem de mais saudável, mas também de mais doloroso, sem abdicar um só instante de si.
          Fiquei pensando que é isso que nos cura ou, pelo menos, nos traz a sensação de cura: encarar e acolher a complexidade, a grande mistura, que define o real. Que outra coisa faz a literatura senão nos deixar cara a cara com a impossibilidade de resumir uma pessoa em um nome? Que outra coisa faz senão nos deixar frente a frente com o grande abismo do qual, de repente, ressurge uma palavra inútil como "Stugeron"? "

José Castello

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