dezembro 30, 2010

Comida é o mundo

"TANTO PROUST quanto o nosso memorialista Pedro Nava falam de comida com muita sensibilidade e inteligência. Por falar nisso, a autobiografia de Gertrude Stein escrita por Alice B. Toklas e o livro de cozinha de Alice B. Toklas somados à "Autobiografia de Todo Mundo", de Gertrude Stein (o último lançado há pouco pela Cosac Naify), são sensacionais e formam um todo muito agradável de ler. Muito.
O Brasil é engraçado em matéria de livros. Quando ainda não existiam nem revistas de culinária, nós já tínhamos o Câmara Cascudo, um calhamaço que passou alguns anos desacreditado mas que agora na comemoração dos cem anos do autor voltou com tudo, como obra de fôlego que dá uma bela visão do que é a comida brasileira. E Gilberto Freyre nos dá sempre o relato do que se comia aqui com linguagem viva e saborosa. Cozinheiro curioso tem que ler Gilberto Freyre.
Bom começo também, mostrando o pano de fundo e os primeiros comilões da terra, é a carta de Caminha, muito sagaz e bem escrita. Pode-se refletir sobre ela uma vida inteira. E os viajantes, alguns chatérrimos, mas sempre informando.

Dirão vocês que para entender de bufê (que é o meu caso) e cozinha, não são esses os livros escolhidos.
Bem, se não são deveriam ser. Só um pequeno exemplo. Como saber da comida típica dos lugares, como fazer um cardápio para noivos japoneses, como interpretar para uma festa o espírito daquela família? Como reconhecer o seu novo cliente pelo jeito de falar ao telefone? O livro de receitas te ensina isso? Como distinguir sotaques, como arrumar uma mesa seguindo a decoração do lugar? Num espaço que abriga boas obras de arte é quase impossível arrumar comida, por exemplo. Tem que ser o arranjo mais neutro e invisível possível pois a obra engole todo o espaço, deixando poucos desvãos para a sua criatividade brega.
E como descobrir através da linguagem o que o cliente quer, num bufê?
O que ele está falando talvez não seja o que ele quer comer, mas o que acha apropriado para a ocasião. Os livros de culinária são apenas manuais de como cozinhar. O que vai por detrás das panelas é mais importante para o cozinheiro que quer ter uma filosofia e trilhar um caminho coerente. Não que os manuais sejam desimportantes, mas esses manuais cada um vai escolher os seus, o que melhor lhe cabe na mão, que o atrai com suas fotos, que o inspira a ir para o fogão.
Não se acanhem de recorrer aos blogs, a tudo que a web pode fornecer, sem preconceitos.
Já que estamos falando de livros e também das novas tecnologias foi a Virginia Woolf que inventou o Google e a Wikipedia. Só de diários e cartas falando dela própria tem uns doze volumes grossos, sem contar os do marido e outros tantos. Qual o autor hoje em dia tão bem documentado? Cada instante de suas vidas, nenhum Google daria conta.
Quem melhor do que os escritores e leitores tão solitários para lidar com comida? Um simples ato de fritar um ovo os tira daquela torre de marfim, regar o jardim, fazer um bolo. A comida é a realidade da vida, o mundo. Pode-se abastecer a imaginação com sonhos e traduzi-los depois na hora de temperar o cabrito com as mãos cheirando a alho". 


NINA HORTA 

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