novembro 16, 2010

Que olhos os teus

O cantor Ney Matogrosso encontrou-se no domingo, assim que terminou o show "Beijo Bandido", com a fã Leide Moreira, 62. Ela não lhe disse uma palavra. Apenas olhou para o ídolo. Não mexeu um músculo. Ele perguntou se ela compreendia o que estava acontecendo. Sim. E acabou-se o encontro da fã com o cantor. Nem beijo teve.
Mas Leide, advogada e poeta, estava feliz como há muito tempo não acontecia. Imobilizada desde 2005 em uma cama, por causa da doença conhecida como esclerose lateral amiotrófica, caracterizada pela paralisia progressiva de cada músculo do corpo, Leide escolheu ir ao show de Ney Matogrosso.
Ela não fala, não anda, não come. Nem respira. Todas essas funções são realizadas por aparelhos, oxigenadores e sondas espetadas pelo corpo.
Também não pisca. O abrir e fechar de olhos, necessário para a lubrificação do globo ocular, quem faz são cuidadoras e enfermeiras, manuseando com delicadeza e paciência as pálpebras sem força nem para um piscar. (Até o verbo ficou estranho: "Pisca a Leide, por favor", pede uma cuidadora à outra de tempos em tempos.)
Mas a mulher ouve e entende o que se passa em volta. Por exemplo, gosta de Ney Matogrosso, que canta de Vinícius de Moraes "Quantos naufrágios/ Nos olhos teus.../ Ó minha amada/ Que olhos os teus".
Foi com os olhos -a única coisa que ainda consegue mover por conta própria- que Leide falou de seu desejo de ir ao show. A mulher se comunica como o protagonista do filme "O Escafandro e a Borboleta" (França, 2008).
Uma tabela com letras e palavras-chave é-lhe apresentada. Coluna 1? Olhos virados para a direita significam "sim", para a esquerda, "não". As cuidadoras Ivania Soares e Eliane de Almeida perguntam pacientemente: Coluna 1? 2? 3?, até que venha o "sim". Segue-se a pesquisa da linha. 1? 2? 3? Até o "sim". Na intersecção de linha e coluna, surge a letra desejada. E outra e outra. Até formar a palavra: Ney.
Leide não saía de casa desde o aniversário de São Paulo (25.jan). É difícil. A família tem de alugar ambulância com médico, técnico de enfermagem e enfermeiro, além do motorista socorrista.
Como equipamentos de apoio, leva um concentrador de oxigênio, um respirador, cilindro de oxigênio, sonda para urina, dieta para ser ministrada diretamente no estômago. E vão ainda as duas cuidadoras e a técnica de enfermagem Cristiane Santos Antão da Silva. Mais a filha, chamada Leide, como a mãe.
Ivania e Eliane aprenderam a gostar de Ney Matogrosso com Leide. Os olhos pedem os CDs. As duas decoraram todas as músicas. No show, enquanto uma mão "pisca" Leide, a outra mão dança ao ritmo de "Fascinação": "E, no teu olhar, tonto de emoção, com sofreguidão, mil venturas previ."
O Sesc Pinheiros, onde fica o Teatro Paulo Autran, com 1.010 lugares, é um oásis para pessoas com necessidades especiais -tem 20 espaços para cadeirantes, 20 para acompanhantes, 5 para pessoas com mobilidade reduzida e 11 cadeiras especiais para obesos. Mas o local nunca tinha acolhido alguém com necessidades tão, tão especiais quanto as de Leide.
Instalaram uma tomada ligada diretamente ao gerador -se a Eletropaulo falhasse, o respirador seguiria funcionando. E arrancaram uma fileira de cadeiras a fim de acomodar o mundo de Leide.
Uma diferença e tanto do tratamento dispensado a Leide em 2008 pelo Citibank Hall, em outro show de Ney Matogrosso. Na ocasião, a casa de espetáculos cobrou, além dos ingressos dos acompanhantes, quatro ingressos de Leide, alegando que ela, a maca e os equipamentos ocupariam o espaço de uma mesa. Ela pagou. "Eu não vou dizer nada por dizer, então eu escuto."
Leide mora bem pertinho do Ibirapuera. Até fevereiro de 2005, fazia cooper no parque. Em agosto, já presa à cama, submeteu-se a uma gastrostomia (para a introdução da dieta no estômago). Em novembro, foi a traqueostomia, para respirar. "Foi um ano sem poesia", escreveu ela com o método da tabela.
As Leides, mãe e filha, procuram não pensar na tragédia nem nas promessas de cura. Pensam apenas no dia de hoje. E o domingo foi lindo. "Fiquei bastante emocionada. Minha equipe se mobiliza inteira para que eu possa sair", ela escreveu, respondendo à Folha.


LAURA CAPRIGLIONE

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