novembro 25, 2010

Leituras e línguas

"DIZ-SE, COM razão, que se devoram os livros bons. Como devoramos boa comida. Começamos com chás e papinhas, tudo que escorra pela garganta abaixo sem problemas.
Depois descobrimos o gosto da surpresa. Nessa primeira fase tudo é novidade das melhores, nos entupimos do que gostamos, temos indigestões homéricas, não voltamos a provar daquele amendoim torrado porque um dia ele nos fez mal.
Assim, com as leituras. E tudo que cai na rede é peixe, nossa língua é tão curiosa quanto nossos olhos. Na casa de um você experimenta a língua defumada, na casa de outro, a alcachofra, e o macarrão feito à mão pela nonna de alguém e as sementes secas de abóbora e o pão com alho e o pão com chocolate e uvas, o picles de pepino, um mundo de infinitas possibilidades.
Ler outras línguas é quase uma obrigação. Muitos caçoam, acham elitista, snob. Não. Existem pessoas que não têm pendor para línguas. Essas devem aprender inglês de qualquer jeito e basta. Existem aquelas que têm facilidade. Estou falando só em ler, é uma habilidade diferente de falar e escrever. Não é preciso ser rico para aprender línguas, asseguro.
Minha mãe, ao se casar, deixara sua especialidade que eram as crianças mongolóides, hoje, crianças com síndrome de Down. Fez-se amiga de uma inglesa que tinha uma filha para ser alfabetizada. Pois as duas fizeram um escambo. Rosemarie ficava com minha mãe e eu com Thekla Hartmann. Rosemarie foi bem mais rápida do que eu no escambo. Em pouquíssimo tempo lia perfeitamente bem.
Comecei com as histórias de Heidi, e meu pai, muito esperto, me convidou a ler um livro da Agatha Christie com ele. No auge do mistério parou, disse que perdeu a paciência. Fiquei doida, leria até russo se precisasse para descobrir quem era o culpado no livro que em inglês tinha um nome bastante português. "And then there were none" (e acabaram-se todos), que contava o fim da história.
Bem daí não teve parada, as leituras passaram para o inglês, na maioria, não sem antes ter lido Humberto de Campos e Coelho Neto, muito famosos naquela época, assim como Eça. Eça de Queiroz era uma descoberta infinitamente boa, um mestre nos meandros do português.
Francês não apresenta dificuldades grandes para nós. Alemão, juro que é uma das línguas mais fáceis para quem sabe inglês e para quem é birrento, que decora os gêneros e tempos de verbo obsessivamente. Para ler é procurar no dicionário uns prefixos, sufixos, que até são poucos, e começar com livros de ação. Se o autor se põe a descrever paisagens o negócio complica, mas James Bond está sempre preparando alguma e logo se aprende ler alemão com ele.
Italiano não exige mais que três meses. Espanhol talvez não seja preciso ter aulas, e Cortázar noutra língua não tem graça. É um cronópio argentino. Até nisso a nossa comilança se parece com as leituras, vamos incorporando a comida de outros países como se fosse nossa, ainda sem muito discernimento mas com boa vontade e alegria de viajar. Mas, no final, as receitas típicas são mais gostosas com ingredientes colhidos no quintal e feitas por uma sábia avó. Falaremos dos livros de outro terroir logo depois."

NINA HORTA

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