outubro 31, 2010

Memórias que viram histórias

A democracia é uma festa
Belo Horizonte, 1989

"DIFICILMENTE uma eleição presidencial será tão marcante para mim quanto a de 1989. Foi ali o marco zero da minha vida política, apesar de eu ter 11 anos naquele 15 de novembro e de haver frequentado as passeatas das Diretas, no colo da minha mãe, e de ter feito boca de urna (então na mais perfeita legalidade) em 86 e 88.
Aprendi a falar com a dicção de Leonel Brizola e Paulo Maluf. Até hoje, sei na ponta da língua os jingles de Aureliano Chaves, Mario Covas, Affonso Camargo e o indefectível Eymael. Lia as memórias de guerrilha de Alfredo Sirkis ("Os Carbonários") e Fernando Gabeira ("O que é Isso, Companheiro?"). Palavras como "Centrão" e "conjuntura" faziam parte do meu vocabulário. Vendi buttons e camisetas em prol do meu candidato, o que me daria um certo banzo nos tempos do mensalão.
Em 88, minha irmã, então com nove anos, coberta de adesivos de sua xará Luiza (Erundina), foi pedir um autógrafo a José Serra, adversário de Erundina na eleição para a Prefeitura de São Paulo. Serra decidira ir votar na PUC, o nosso reduto na época, onde fazíamos uma animada boca de urna.
Vendo aquela criança debaixo de uma espessa camada de adesivos vermelhos, Serra perguntou: "Mas por que você quer um autógrafo meu, se está com os adesivos da Erundina?". A perspectiva de ganhar um autógrafo do candidato desmontou na hora os brios políticos de minha irmã, que deu a desculpa: "Ganhei esses adesivos de presente!". Serra não se convenceu e negou o autógrafo. Perdeu a eleição.
Em 89, Luiza apoiou Ulysses Guimarães, pois o padrasto da melhor amiga dela trabalhava na campanha do PMDB. Eu estava no auge do meu esquerdismo e deblaterava contra "os burgueses". Um dia, minha irmã perguntou o que era "burguês". Eu disse que era a pessoa que gostava de "restaurantes caros, roupas da moda, viajar para o exterior". Luiza respondeu, olhando para minha mãe: "Ele é tão diferente da gente, né?".
Eu estava em Belo Horizonte nas semanas da eleição e, no dramático 3 de outubro, acompanhei meu tio, que era mesário, até a escola onde ia funcionar a seção eleitoral presidida por ele -que mais parecia um episódio da série "A Grande Família", da TV Globo. Meu tio seria uma mistura do Lineu (personagem de Marco Nanini), o paizão correto e estressado, com o Agostinho (Pedro Cardoso), o cunhado marrento e afetuoso.
Sem os vales-refeição que hoje são dados aos mesários, ele escreveu na lousa um manifesto denunciando a mesquinharia das autoridades, que não ofereciam nem sequer um sanduíche aos cidadãos abnegados que faziam funcionar a "festa da democracia". E exortou seu eleitorado a trazer, no segundo turno, víveres para os pobres mesários.
No segundo turno, as donas de casa de BH compareceram em massa: biscoitos, sanduíches, bolos, pão de queijo, sem falar no doce de leite, goiabada e ainda café (na garrafa térmica), sucos e tudo mais que pudesse empanturrar colégios eleitorais inteiros. Depois de comungar naquela pantagruélica seção eleitoral, nunca entendi por que tem gente que reclama de ser mesário.
Não consigo olhar com severidade para esse jeitão do meu tio, nem mesmo lembrando que ele, com a cumplicidade dos colegas de mesa, bisbilhotou um voto que ficara com a pontinha para fora da urna. Esperaram que a eleitora saísse e foram lá conferir. Aberta a cédula, os três ficaram vermelhos (com o próprio vexame): "Vergonha de ser brasileira", escreveu a cidadã. Estava certíssima. Anular o voto tinha muito mais graça na era da cédula de papel.
Aquela eleição foi histórica para todos, mas acho que, na minha memória, ela restou sobretudo como um momento afetivo. Era como se o país estivesse pré-púbere e cheio de hormônios como eu. Não era só comigo que tudo estava acontecendo pela primeira vez.
Na saída, ganhei de presente do meu tio as duas cédulas aqui reproduzidas, em branco e inválidas (pois não estão rubricadas). A democracia era mesmo uma festa".

PAULO WERNECK

Nenhum comentário: