outubro 14, 2010

Inflexibilidade presidencial

"Costumo dizer que escrevo de ouvido.
Conhecimento de gramática infelizmente não é hereditário, e como não fui boa aluna de português, não tenho ideia (teórica) do que me faz pôr uma palavra antes da outra, ou do caminho das interjeições e dos advérbios. As palavras se encaixam no texto da forma que me parece mais fluida e bonita. É claro que ler dia e noite e estar cercada de pessoas que dominam a língua de trás pra frente me ajudou na formulação desses conceitos. Uma das consequências diretas de conviver com palavras bem arrumadas é, na medida da sua própria capacidade, arrumar bem as palavras.
Escrevo isso à guisa de disclaimer, aquele aviso legal muito comum nos países de língua inglesa, que informa ao público que não cabe responsabilidade ao autor da página, fabricante do produto, vendedor da mercadoria ou quem quer que seja pela interpretação indevida, uso idiota ou consumo inadequado de seja lá o que for. O meu disclaimer é necessário para que fique estabelecida desde já a minha inadequação como professora, especialista no idioma ou guardiã da sua norma culta. Sou apenas uma pessoa que ama a língua portuguesa e que, por acaso, dela tira o seu sustento, ainda que não a conheça em todas as suas minúcias.
E por que isso? Ora, porque desde que a campanha política começou, estou por aqui com a palavra “presidenta”, que acho feia, aberrante e sexista. Acrescento ao disclaimer lá de cima que esta é uma opinião pessoal, uma birra individual, uma cisma idiossincrática. A palavra existe e está nos dicionários, mas eu — novamente em caráter pessoal — acredito que nem toda palavra boa está nos dicionários, assim como neles estão centenas, talvez até milhares de palavras que, há tempos, já poderiam ter sido eliminadas do vocabulário.
Para mim parece óbvio que palavras terminadas em “e” funcionam perfeitamente bem para ambos os gêneros. Ou agora vamos começar a dizer gerenta, amanta, assistenta, estudanta, adolescenta? Faz algum sentido, isso? Não, não faz; mas, sabe-se lá por que, a igualmente incongruente palavra presidenta encontrou abrigo nas páginas dos “pais dos burros”. Até aqui, porém, estava lá como um daqueles tantos exemplos de curiosidade semântica que encontramos nos dicionários; não me lembro de ter ouvido ninguém chamando a presidente do Chile de presidenta Bachelet, ou as tantas presidentes de empresas de presidentas disso ou daquilo.
A palavra foi reinventada com a candidatura da Dilma, e agora Inês é morta: depois de tanto tempo de propaganda gratuita, depois de tantos debates e, sobretudo, depois de o presidente Lula repetir tantas e tantas vezes a palavra presidenta, tudo indica que a palavra presidente só será usada em relação ao gênero masculino. Uma pena, porque para mim, pelo menos, presidenta está no mesmo nível de incongruência e ridículo que presidento.
Tentei levar o assunto para o Twitter mas não fui bem-sucedida. Recebi, de cara, uma Resposta Clássica: “Acho esta questão não apenas irrelevante como escrota.” Discutir com a dialética elegante do PT é difícil.
Coisa mais espantosa aconteceu no Facebook, onde uma moça amável e inteligente, escritora premiada ainda por cima, decidiu ditar o que eu devia (podia?) discutir ou não: “Cora, com todo respeito: a gente está elegendo presidente do Brasil ou presidente da Academia Brasileira de Letras? A Dilma está tentando discutir o que realmente importa para resolver problemas desse país, e comentários como esses seus continuam desviando o foco. Não acrescentam absolutamente nada.” Sem querer, o meu comentário trivial sobre a palavra que me desagrada deu origem a uma das respostas mais políticas que recebi nos últimos tempos — e uma das mais reveladoras.
Perto disso, a Resposta Clássica não foi nada, porque, além de não ser mesmo nada, partiu apenas de um ignorante.
A língua é coisa tão misteriosa que outra palavra muito em moda nos últimos tempos não me incomoda nada vertida para o feminino.
Se parentas da Erenice tivessem aparecido no noticiário, ao invés de apenas parentes, eu teria achado perfeitamente natural.
Não como personagens, claro, mas como substantivos comuns".

Cora Ronai – no Globo de hoje

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