outubro 21, 2010

Comida como sobrevivência

"CERTAMENTE, MUITOS livros vão surgir contando a vida dos mineiros presos no fundo da terra. De que sentiram falta, o que os apavorou ou como se sustentaram tão bravamente. E tenho certeza de que se vai falar muito em comida.
Nos primeiros 17 dias, antes de serem encontrados, não comiam nem bebiam. Imediatamente depois de achados, as "pombas", tubos de plástico, começaram a descer com quatro garrafas de água de meio litro cada uma e quatro pacotes de biscoito. Mais adiante, a dieta líquida, de 1.200 calorias, foi elevada para 2.000.
Não podiam comer muito para não engordar e caber na geringonça salvadora. Não era: "Eu preciso caber neste jeans". Era quase: "Eu preciso caber nesta vida".
No dia primeiro de outubro, chegou a primeira comida quente e mais sólida, como arroz com almôndegas. Afinal, de tudo um pouco. Pão com queijo, carnes, sanduíches de presunto, geleia e frutas.
Uma das filhas falava com os jornais. "Meu pai gosta muito de frango com abacate." Não chegaram a oferecer um menu à la carte.
Não tenho como bancar a vidente, mas, pelos relatos de guerra, podemos suspeitar que a comida se torna muito importante, principalmente quando acontece alguma coisa que isola as pessoas de suas casas. E a comida de onde estão começa a ser uma parte essencial do "assunto" diário. É a sobrevivência, tanto psicológica quanto física. Mas as memórias, sonhos e fantasias são necessários para manter o contato com a casa e com a vida.
O que pode causar estresse mental é a falta de tudo o que é pessoal e particular. Em situações de felicidade vocês já não se pegaram, logo ao chegar a um hotel, pondo flores no vaso, dependurando a roupa, livros na cabeceira, guarda-chuva atrás da porta? Preparando o ninho.
E a saudade que dá no meio da viagem do banheiro de nossa casa, quando ele é dez vezes menos bem aparelhado do que aqueles da viagem? A falta de individualidade pode produzir uma apatia total. Para quê? Por quê?
Prisioneiros de guerra, quando a comida é pouca, geralmente comem virados para a parede para não serem vistos. O comer deixa de ser social para ser sobrevivência.
Aposto que os mineiros devem ter dado apelidos aos potinhos de papa infantil que chegavam a eles. É esperar para ver. Começam a reagir criando esperanças quando dizem: "Quero viver só para sentir novamente o gosto de uma cerveja gelada, de um bife, do macarrão com carne moída da minha mulher". Ou "de minhas mulheres".
Mesmo os mais ativos e positivos mineiros devem ter sonhado com o voltar para casa. E, então, o poder das lembranças é enorme. A visão de um abacateiro carregado, o cheiro de tomateiro pisado, a sopa quente no frio da cozinha, o choro das crianças.
Ninguém se lembraria de uma lagosta ao creme, mas sim da comida de casa quando era pequeno, amado sem restrições.
Se a comida existiu na vida desses homens, não foi somente como motor de sobrevivência, mas também nas suas fantasias de gostoso, farto, cheiroso, tudo muito ligado ao colo da mulher ou da mãe.
Nesse caso, a antissedutora era a Mãe Terra".


NINA HORTA

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