outubro 28, 2010

Comer para contar

"ESTAVA LENDO um livrinho sobre os aspectos do romance de E. M. Forster, aquele mesmo que escreveu "Uma Passagem para a Índia". É a transcrição das aulas que deu em Cambridge, na primavera de 1927. Bem interessante.
Logo no começo, ele informa os alunos que os principais acontecimentos da vida humana são o nascimento, a comida, o amor e a morte. Pelo menos, são os mais importantes. Os que escrevem não podem se estender muito sobre o nascimento e a morte, pois o bebê e o defunto não se comunicam com facilidade. O escritor, então, tem que preencher o que acontece ao seu personagem no intervalo entre esses dois períodos. E o que há?
A comida, certamente. Aquilo que mantém a chama acesa, a história sem fim de enfiar para dentro de um buraco no meio do rosto vários e diferentes objetos, sem achar o processo muito entediante.
Não só restauramos nossas forças como lidamos com um lado estético, pois a comida pode ser boa ou ruim, feia ou bonita.
Mas, na verdade, os romancistas não se preocupam muito com os três aspectos acima, e sim com o amor. Nos romances, a comida tem quase sempre só um papel coadjuvante, social, de juntar as pessoas. Os personagens têm fome, mas é a fome do outro. Vivem ocupadíssimos com as relações humanas.
No cinema, a mesma coisa. Amor, relações humanas. Na TV, também não dá tempo. As empregadas não podem trabalhar porque precisam rebolar muito. E, então, todos aproveitam os fartos cafés da manhã em bules de louça que inexplicavelmente mantêm quentes o café e o leite. E muitos programas de chefs ensinando a cozinhar. Reality shows só de cozinha.
Como será no futuro? Qual dessas atividades será a mais importante? Vamos mudar? Os romances vão mudar? Se mudarmos o nosso jeito de ser, os romances mudarão também. E afinal? Relações? Amor do mais puro, casamento, separação, sexo explícito ou, ou, ou... Acho que ou, ou, ou.
Hoje quase não se come sem primeiro fotografar a comida. Abro os blogs, abro o Facebook, penso que é deformação profissional. Estou acessando uma colmeia de trabalhadores da cozinha, um enxame de cozinheiros, nada mais natural que o assunto seja comida.
Vou à moda. A preocupação principal é não comer. Vou para artes plásticas em que um sujeito cataloga monstros pintados através dos tempos, mas... tem um álbum em que registra tudo o que comeu.
Os que gostam de música também comem. E contam. Agora contamos o que comemos. Fotografamos o que comemos. Queremos endereços de bons restaurantes. Qual "Mona Lisa" qual nada.
Alguma coisa de muito interessante está acontecendo neste mundo. Nossas bocas estão enormes; nossas barrigas, rasgadas numa tomografia lúcida, exigentes; os mercados, vivissecados. Há que se fotografar, comer e contar. (Nome supimpa para um livro ou um blog).
O amor que se dane. Importa o vinho que eu estou bebendo, o queijo de mil cheiros, o desenho impecável no prato.
Escritores! Atentos, escrevam sobre o que comemos. Nos dirão quem somos".

NINA HORTA

Nota: Daqui a pouco volto para contar das ostras que comi ontem...;)

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