setembro 17, 2010

CARTA A MIM MESMO DAQUI A 50 ANOS

"Meu querido Chico,

Espero, é claro, que esta carta te encontre bem. Não me iludo: quando digo "bem", tento pensar de acordo com seus próprios critérios. Alguma vitalidade. Poucas dores, uma ou outra limitação física, nada que comprometa sua independência ou capacidade de tomar decisões. Se não for esperar demais, também torço para que o fígado ainda funcione, o suficiente para uma bebedeira ocasional.
Como andará o seu humor? É fácil rir de si mesmo aos trinta anos - e agora? Tanto tempo depois, não me surpreenderia se as frustrações tivessem feito algum estrago em seu espírito. Os devaneios, por menores que sejam, acabam esmagados pelo peso dos fatos. As intenções elevadas vão dando lugar a sentimentos mais, digamos, pedestres: a mesquinharia, o orgulho, a ambição vazia. O cinismo. A amargura.
Foi impossível evitar. As coisas foram acontecendo, não havia como se proteger. Há quem tenha te decepcionado; há, ao contrário, aqueles a quem você ofendeu, que não conseguiu evitar magoar - e a culpa por esses gestos ainda deve doer em você.
E há os mortos.
Sim, os mortos. Gente que você amou e que te fez feliz. Gente que ajudava a te definir, que era a janela através da qual você enxergava algum sentido no mundo - e que agora, justamente quando era mais necessário, não está mais por aqui. Você já sabia que seria assim, mas isso não ajudou em muita coisa. Posso imaginar sua perplexidade. Seu assombro. Diante desse vazio, não deve restar muito a fazer senão sentar-se num canto e, em silêncio, acostumar-se à solidão.
A pergunta soa quase absurda, mas eu me sinto obrigado a fazê-la: diante de tudo o que aconteceu, você ainda será capaz de se apaixonar? A proximidade do fim carrega um quê de egoísmo: é uma luta que se trava a sós. Não seria o amor, do seu ponto de vista, um capricho típico de quem, por estar distante da morte, ainda vive a ilusão da eternidade?
É bem provável. Mas, pensando melhor, também pode ser que aconteça exatamente o contrário. Que a iminência do fim, em vez de paralisar o espírito, recheie as coisas de uma intensidade inesperada. De uma hora para outra, você se vê lúcido e forte. Pela primeira vez, sente-se capaz de encarar a vida de frente. Tudo é claro, tudo é igualmente simples e fundamental. As coisas são o que são, e é desse ponto privilegiado que você se permite entregar-se sem medo às paixões mais ferozes.
Será mesmo? Não sei. Estou um pouco confuso. Nem tenho muita certeza, na verdade, do motivo de estar escrevendo tudo isso. No fundo, acho que tenho apenas a expectativa de que essas linhas te alcancem - e que você as leia com uma espécie de compaixão. Quanta solenidade, meu Deus. Que desperdício de palavras. O que espero, no fim das contas, é que você encontre esta carta e, com um sorriso no rosto, grite para o cômodo vizinho: vem cá, meu bem. Vem ver isso que eu achei na gaveta. Dá pra acreditar numa coisa dessas?
Um abraço,
Chico"


Chico Mattoso, é escritor, tem 31 anos.
publicado na BRAVO!

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