julho 10, 2010

Roberto Piva

Há método em sua loucura
"Alô, condessa? O que você está fazendo nessa vidinha (cobras e lagartos) de papai & mamãe na (cobras e lagartos) Vila Madalena cheia de petistas universotários (sic)? Nesse bairro você sai de minissaia e os carinhas dizem: "Oooiii..." Você tem que morar no Centro, em que quando você passa, os homens fazem "ssssssss"." Provocações assim eram feitas ao telefone em altos brados bêbados, no horário inconveniente das duas da madrugada. O chato do outro lado da linha, acreditem, era meu feroz e controverso amigo Roberto Piva. Monarquista pour épater, me apelidou Condessa von Kehl. Gostávamos muito um do outro. Eu admirava sua poesia exaltada aliada à sua vida de risco; e logo entendi que com ele, adepto fervoroso da verdade que fere, a amizade estava acima de todas as suscetibilidades. Mais de uma vez eu desliguei na cara dele e despluguei o telefone para conseguir dormir, mais de uma vez o expulsei de minha casa por comportamento inconveniente diante das crianças. Ele se indignava com minha caretice, mas não se ofendia. Um sinal inequívoco, a meu ver, de grandeza interior.
No alto/ do Viaduto o louco colava pedacinhos de céu/ na camisa de força/ destruindo o horizonte a marteladas (Paisagem em 78 r.p.m. em Paranoia, 1963).
Parodiando o velho bigodudo de quem ele foi grande leitor, eu diria que Roberto Piva praticou, com rara maestria, uma "poesia a marteladas". Em algumas passagens, o efeito das imagens em apaixonada oposição que caracterizavam seus versos não era apenas o de demarcar seu campo, seu time, sua profissão de fé. Servia também para atrair adesões incondicionais e afastar os que, pior que seus inimigos, poderiam ser tachados por ele de idiotas. Contra Eliot pelo Marquês de Sade (...) contra o Jardim Europa pela Praça da República, contra o céu pela terra, contra Virgílio por Catulo, contra a lógica pela Magia (...) contra Cristo por Barrabás, contra os professores pelos pajés... (A Catedral da Desordem em Os Que Viram a Carcaça, 1962). Piva não recorria ao método paranoico-crítico só para escrever: ele também era assim para viver, escolher amigos e amantes, brigando para extrair deles, de nós, (a marteladas...?) o mesmo ágalma da inspiração que o movia.
"Só acredito em poeta experimental que leva uma vida experimental", dizia. Foi o principal desbravador de uma geração em que as liberdades individuais desviantes da norma, como o homossexualismo, o uso de drogas, a vagabundagem escancarada, a invasão performática dos espaços públicos na cidade que ele amava e odiava, eram praticados como forma de heroísmo. Mas sua excentricidade não se alinhava, como seria de se esperar, a nenhuma veia melancólica. Exuberante, sensual, prolixo, Roberto Piva só foi solitário nos momentos em que realmente não encontrou quem quisesse acompanhá-lo até o limite de suas extravagâncias místico-sensualistas: Eu não me apoio em nada/ a lua não se apoia em nada (Visão de São Paulo à Noite em Paranoia).
Quando simpatizava com alguém, quando vislumbrava através de todas as aparências em contrário um possível aliado, costumava acionar sua poderosa máquina aliciadora sem pudor e sem limites. Precisava de aliados como de amigos e de amantes. Não queria formar um partido e sim uma legião. De anjos terríveis. Em sua poesia o desejo é violento. O amor é violento. Os poemas da mais escancarada ternura amorosa são violentos. Vou moer teu cérebro, vou retalhar suas coxas imberbes & brancas. (...) vou incinerar teu coração de carne & de tuas cinzas vou fabricar a substância enlouquecida das cartas de amor. (20 Poemas com Brócolis, 1980.)
Sua sofisticação era existencial, não material. Nesse segundo aspecto, foi tão pobre que aprendeu a tirar leite das pedras. Pedia aos que tinham carro que o levassem a Jarinu, a Cananeia, à Serra da Cantareira ? lugares perto de São Paulo onde houvesse um pouco de mata para matar sua sede de experiências xamânicas, sua fome de escuridão e de mistério. Contentava-se com pouco. Sua imaginação transformava um matinho em Mairiporã na selva amazônica.
Apesar disso tudo, engana-se quem imaginar que o percurso poético de Roberto Piva fosse pautado por qualquer espontaneidade complacente. Piva não era louco. Praticava a loucura como método, mas tinha um controle absoluto de sua obra, de seu percurso literário/filosófico/místico/existencial, assim como de sua imagem pública. Uma vez fui entrevistá-lo para a Gazeta de Pinheiros: tratou-me com gentileza, mas, literalmente, conduziu sua própria entrevista do começo ao fim. Mais tarde, em 1986, eu apresentei um programa de entrevistas ao vivo para a Rádio Cultura de SP, o Radar Cultural. Convidei Renato Pompeu e Roberto Piva para um debate sobre arte e loucura. Renato, o "verdadeiro" louco, relatou sua experiência manicomial com muita sobriedade e resistiu à sedução do Piva, que tentou o tempo todo levá-lo para seu campo, do elogio à loucura. Ao fechar o programa, Renato reafirmou que a verdadeira experiência da loucura não é nada produtiva. "Eu só escrevo quando não estou louco." Piva arriscou então um gran finale ao vivo, na lata: "Pois eu prefiro enlouquecer que escrever. Só escrevo quando não estou na orgia bebendo, me drogando, transando, pirando..."
Quase perdi o emprego ? mas não o amigo ? por causa dessa bravata.
Maria Rita Kehl

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