maio 05, 2010

Loucuras de antigamente

"O PASSADO é um país estrangeiro: as pessoas fazem coisas diferentes por lá". É assim que começa "O Mensageiro" ("The Go-Between"), romance do inglês L. P. Hartley escrito em 1953.
Lembrei-me da frase nestes dias, porque finalmente aluguei em DVD a primeira temporada de "Mad Men", série bastante premiada nos Estados Unidos. Na TV a cabo, já transmitem a terceira temporada (quintas, às 21h, na HBO), mas prefiro pegar tudo de uma vez.
Do que eu vi, incomodou bastante o ar de novelão que existe desde as primeiras situações dramáticas. Aquelas donas de casa sofredoras, com suas crianças inocentes dormindo com ursinho de pelúcia enquanto o pai faz canalhices, não me empolgam nem um pouco.
Em todo caso, achei que ia gostar do tema. A série se passa numa agência de publicidade americana, no começo dos anos 1960.
Ou seja, uma época em que a ingenuidade dos velhos anúncios tem de ser substituída por recursos bem mais engenhosos de cinismo.
A propaganda de cigarros não podia mais, dadas as evidências científicas, invocar o testemunho de médicos assegurando que tal marca era mais recomendável do que outra.
A origem do famoso slogan dos cigarros Lucky Strike ("são tostados") aparece no primeiro episódio da série. "Mas todo cigarro é feito com tabaco tostado", diz um executivo da indústria. Não importa, responde o publicitário genial; qualquer razão é boa para se impingir determinado produto à massa dos consumidores.
Seria bem melhor, em todo caso, se "Mad Men" mostrasse uma agência publicitária nos dias de hoje. O cinismo de cinquenta anos atrás se torna quase inocente e comovedor agora.
O que a série traz de mais interessante tem a ver, na verdade, com isso. É que um passado relativamente recente (para mim, pelo menos), como os anos 1960, surge na tela de televisão como uma época histórica, tão longínqua e exótica como a Inglaterra Vitoriana ou a República de Weimar.
O único trabalho disponível para as mulheres é o de secretária ou recepcionista. O assédio sexual dos executivos sobre suas ajudantes é coisa obrigatória e naturalíssima.
Uma sedutora milionária, potencial cliente daquela agência de publicidade nova-iorquina, é mal tratada não só por ser mulher, mas também por ser judia.
O médico ginecologista, que fuma sem parar, exige da paciente promessas de bom comportamento antes de lhe entregar a receita de pílula anticoncepcional.
Também pudera: os personagens de "Mad Men", em plena maturidade no início dos anos 60, podem muito bem ser os avós de quem assiste à série hoje.
Mas daí resulta a sensação quase celebratória, apologética, que o programa termina provocando no espectador. É como se cada situação viesse a nos lembrar os progressos alcançados pelas últimas gerações.
Com mais sutileza, "Mad Men" mostra outra notável mudança de costumes.
Uma menina de cinco ou seis anos está brincando de astronauta. Por algum motivo, a mãe não gosta e chama-a para ouvir uma bronca. A menina aparece, inteira metida num saco plástico transparente.
O espectador atual imagina que será repreendida exatamente por isso: histórias de acidentes com asfixia deixariam qualquer um de sobreaviso.
Mas a mãe da menina nem liga; adverte só contra a desordem no armário embutido. Fumar sem parar, ignorar os cintos de segurança e os riscos de acidente doméstico: um constante descuido com a própria sobrevivência parece ser o equivalente ao que, no século 19, era descuido com a higiene pessoal.
O medo da bomba atômica pode ter diminuído, mas foi trocado por uma espécie de terror difuso, a exigir uma constante atitude de superproteção. As sensibilidades se exacerbam ao extremo no mundo saudável e politicamente correto de hoje.
A linha entre a mentira e a verdade, ainda clara para os publicitários de 1960, já não parece ter a mesma importância. Uma boa coisa de "Mad Men" é o fato de romper com uma tradição, bem frequente nos anos 80 e 90, de tratar como felizes e bem ordenados os tempos da Guerra Fria.
Os filmes de "nostalgia" parecem, finalmente, estar saindo de moda. Com toda a elegância dos seus ternos e vestidos de "shantung", aquelas pessoas eram infelizes e, claro, loucas de pedra. Falta esclarecer se não continuamos do mesmo jeito."

MARCELO COELHO

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