maio 06, 2010

Coisas de escrever

"Tem sido cada vez mais difícil entender minha letra. Antes do computador, eu me resignava a escrever de forma legível, pois sabia que esses textos originais eram preciosos. A memória precisa de um suporte para que os pensamentos não virem pó.
Fico aflita com palavras rabiscadas, marcas de borracha que deixam o papel esfolado e a sombra indelével das palavras. Diante de um texto sujo, parece que não sei pensar.
Por isso, troquei o uso da caderneta (que ainda levo na bolsa, mesmo vazia) pelos netbooks e smartphones. É prático, porque posso transferir as anotações para o computador. Economiza tempo também. Mas o principal é o texto limpo.
O ruim é que gosto do gesto físico de escrever. É uma delícia segurar um lápis e ir deixando palavras numa folha em branco. É quase como pintar um quadro. E gosto, também, das coisas de escrever -lápis, papel, borracha... Elas não são meras coisas. São companheiras de projetos, sentimentos e realizações. Também marcos do tempo em que vivi.
Usar caneta tinteiro me fez sentir muito adulta, especialmente quando segurei minha primeira Parker 51, caneta de gente grande, segundo meu pai.
Gostava do cheiro da tinta e de enxugar as palavras com o mata-borrão.
Aos dez anos, ganhei uma máquina de escrever Remington. A fita vivia escapando da guia e, então, os dedos ficavam sujos de preto e vermelho. Lições de paciência e atenção.
Depois ganhei uma Olivetti verde, maior e mais dura de manusear. Em seguida, foi a vez da Olivetti elétrica e, por fim, comprei meu primeiro computador. Com ciúme, guardei minhas máquinas de escrever, mas não os computadores que fui trocando pelo caminho.
Foi quando passei da máquina de escrever manual para a elétrica que tive uma estranha e não tão agradável sensação de escrever um texto. Hoje compreendo que a máquina elétrica introduzia um distanciamento entre mim e meu texto.
Com seu ritmo próprio, que eu precisava seguir, ela passou a determinar meu gesto de escrever. Ao contrário da máquina manual, que, com seus sons diversos (o "tlim" da alavanca que virava o rolo, que virava a folha de papel, mais o "tlac" da trava prendendo a folha, o "rec" do rolo girando), me acompanhava e inspirava durante a escritura do texto. Sons que embalavam e compunham o gesto de escrever.
Jamais conseguirei retornar à máquina de escrever manual.
Mas, entre muitos ganhos trazidos pelo computador, coleciono muitas perdas. Sem contar que hoje a luz da tela me irrita os olhos e ganhei uma LER.
Quanto mais completos os programas de texto, mais tarefas paralelas à da escritura eles me atribuem. Cuidar do próprio equipamento é uma tarefa infindável. Nunca perdi um trabalho nem precisei andar com o telefone de um técnico na agenda quando usava a máquina de escrever manual.
O contato com mouse, tela e teclado é asséptico. Sinto falta do contato direto com o papel, de cheiros e sons diversos. Sinto falta, também, do resultado do texto que saía de uma máquina de escrever manual.
Lembro que eu reconhecia minha presença pessoal nele. É tudo anônimo no computador. Tudo abstrato. Impessoal. Do jeito dos nossos tempos."

DULCE CRITELLI, terapeuta existencial e professora de filosofia

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