março 11, 2010

UMA MULHER INACABADA

"NO COMEÇO do século passado, uma menina, Lillian Hel lman, passeava pelo mercado francês de Nova Orleans, de mãos dadas com a tia Jenny, que lhe ensinava um pouco de tudo. No momento, tomavam conta para não caírem no chão escorregadio, cheio de cascas de frutas, no meio da gritaria dos feirantes. O cheiro se misturava no ar, e o mais forte era o de pimenta, pimentões, caranguejos, tomilho e as ostras, aquele bafo de ostra fresca, que ela aprendera a abrir a duras penas. No fundo, esses seriam os ingredientes que levaria na sacola para aprender de vez a fazer um gumbo na perfeição. Começara com bisques que eram mais fáceis, mas hoje seria o dia do gumbo, do ápice da comida creole.
Antes de 1950, Lillian já se tornara uma escritora famosa e conhecida e se casara com Dashiel Hammet, também escritor ("O Falcão Maltês"). Viveram cercados por gente muito interessante e vão passar corajosamente pela era macarthista de caça às bruxas. Lillian escreveu sua autobiografia em três volumes e a editora José Olympio está apresentando o primeiro deles, "Uma Mulher Inacabada" (1969). Logo virão "Pentimento" e "Caça às Bruxas".
Já assisti a uma de suas peças, em Nova York, imaginem, só para ver Elizabeth Taylor e seus olhos cor de violeta. A peça era "As Pequenas Raposas", e o sotaque sulista de toda a trupe era tão pronunciado que, mesmo tendo lido a peça em casa, não entendi palavrinha. E seria preciso um binóculo de guerra para ver os olhos da protagonista localizada como eu estava, no alto do mais alto da mais alta torrinha.
Ao longo da vida, a autora foi me surpreendendo; com Julia, lembram-se do filme "Julia", com Jane Fonda e Vanessa Redgrave? E depois com seu profundo amor pela cozinha. No fim de sua vida, ela e seu amigo Peter Feibleman escreveram um livro que sei que foi traduzido em português, só não sei se ainda está em circulação. Chamava-se "Eating Together, Recollections and Recipes" ("Dois na Cozinha - Receitas e Lembranças", ed. Paz e Terra).
Vejam uma notinha da Hellman, na receita de batata assada. "Vocês vão notar que nem sempre apresentamos os tempos exatos, simplesmente porque na cozinha isso é uma grande balela. Não existe o tempo certo para comida alguma. Mentira.
Vai depender do seu fogão, da panela, da temperatura do dia e de muitas outras variáveis, que nenhum livro de cozinha pode esclarecer. Cozinhar bem é principalmente bom senso e bom gosto." E para vermos como era um bocado contraditória, no fim da receita escreve: "Sempre que como uma batata meio crua, pergunto à cozinheira quanto tempo levou assando. E geralmente me respondem que por 30 a 40 minutos. Está errado, uma grande batata de Idaho deve ser assada por uma hora. E não deve ser cortada com a faca. A faca estraga alguma coisa que não sei o que é. Atrapalha o modo do vapor escapar, acho que é isso. A batata tem de ser amassada com a parte interna do pulso, de modo que o vapor escape em todas as direções."
Controversa, não é? Sempre assim.
Até descobri que existe uma doença que faz com que as pessoas mintam pensando que estão dizendo a verdade. Era um diagnóstico que muitos faziam da imaginação esplêndida de Hellman.
Já para morrer, muito doente, quase cega, sem andar, parcialmente paralisada, pergunta a Feibleman: "Eu já fui bem divertida, não é? Agora perdi toda a graça, eu sei". Ele estava acabando de ler um livro e pediu que ela ficasse quieta até que ele terminasse a página. "Está bem, fico quieta, mas sob uma única condição.
Quando formos conversar, tem que ser um assunto da mais alta importância." "Qual, por exemplo?" "Por exemplo, o que vai ter no jantar?"


NINA HORTA

Nota: 'Uma imaginação esplêndida' é o título desta coluna da Nina Horta. Link no título para "Julia" (1977)

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