março 24, 2010

O Segredo de seus olhos



"SEM SER GRANDE obra de arte, "O Segredo dos Seus Olhos", de Juan José Campanella, tem tudo o que se pode desejar de um filme. A história é excelente, complicada na medida certa, com aquelas boas reviravoltas e surpresas que, quase, quase, o espectador conseguiria adivinhar.
Como convém a um ganhador do Oscar, mistura-se bem todo tipo de ingrediente: crime, política, humor, amor, atores convincentes em cada gesto, coadjuvantes inesquecíveis, diálogos perfeitos (entre outras coisas, "O Segredo dos Seus Olhos" é uma apologia da gíria e do sarcasmo argentinos).
Tudo dá certo como entretenimento, e ainda assim o longa deixa algumas questões interessantes para se pensar em casa. Dizem que para os argentinos, ao contrário dos brasileiros, o passado não passa nunca. Morto há mais de 70 anos, Carlos Gardel possui na Argentina uma atualidade que seria impensável no caso do nosso Francisco Alves, por exemplo.
A impossibilidade de qualquer esquecimento é um dos temas principais do filme de Campanella. Aliás, numa chave mais íntima e sentimental, o diretor já cuidava disso em "O Filho da Noiva": tratava-se de reencenar um amor antigo, salvando simbolicamente um casamento do naufrágio do mal de Alzheimer. "O Segredo dos Seus Olhos" enfrenta mais diretamente o aspecto político da questão, num país que guarda, como o Brasil, o trauma da ditadura. Criminosos a serviço do Estado continuam impunes, lá menos do que aqui. Será possível simplesmente esquecer o assunto e levar a vida como se nada tivesse acontecido?
Para os personagens de "O Segredo dos Seus Olhos", a resposta é não. Parte do filme se concentra numa investigação policial, em meio à ausência completa de pistas. Até que... Não vou contar nada de específico. Só digo que parte do mistério se resolve quando alguém recorre a uma teoria básica sobre o comportamento humano. A de que uma pessoa pode mudar de nome, de religião, do que quiser, mas não abandona jamais sua própria paixão.
Um maníaco por sapatos, um fanático por boxe, um chocólatra convicto não deixará nunca de ser fiel ao seu objeto de desejo. Será verdade? Minha experiência indica, por vezes, o contrário. Paixões mudam, se perdem, se esquecem. Principalmente quando se realizam. Creio que só permanecem ao longo da vida quando não foi suficientemente feito o seu funeral. No caso das torturas, dos esquadrões da morte e demais crimes da repressão (no filme, os malfeitores aparecem ainda no governo eleito de Isabelita Perón), sem dúvida a impunidade corresponde a essa "ausência de funeral". Não se esquece o que não foi vingado.
Mas a mensagem de "O Segredo dos Seus Olhos" não se resume a defender o fim da impunidade. O empenho em fazer justiça pode arruinar tanto o justiceiro quanto o justiçado. Bem ao contrário de tantos filmes produzidos nos Estados Unidos, aqui fica claro por que deve caber ao Estado, e não à vítima, a reparação por um crime cometido. Espanta-me, em todo caso, a tranquilidade com que tantas vítimas da ditadura bem ou mal convivem, no Brasil, com seus algozes. Se eu tivesse sido torturado, tenho certeza de que não sossegaria antes de me vingar pessoalmente de quem me torturou. Talvez as pessoas dispostas a dar a vida por uma causa política tenham uma visão mais prática do problema: alcançar o poder vale o preço de não buscar retaliação. Talvez elas reconheçam que estavam erradas também.
Seja como for, não acredito na possibilidade de simplesmente se reavivar a memória histórica de uma ditadura sem dar o passo seguinte, que é o de punir quem matou e torturou. Anistias, em geral, são atos de generosidade dos vencedores frente aos vencidos. Quando resultam de uma complicada acomodação política, estão sujeitas à mudança das circunstâncias em que foram produzidas.
A questão, no Brasil, é saber o quanto as circunstâncias permitem a revisão da Lei de Anistia. De tempos em tempos, vem o teste -e sempre se verifica que os adeptos da punição têm menos respaldo político do que necessitam. De resto, são os primeiros a depender das forças que gostariam de condenar.
Se é assim, cite-se então o célebre poema e que se toque um tango argentino. Se a música não agrada a todos, que se tente o cinema argentino então: anda um bocado mais adulto do que o nosso".

MARCELO COELHO

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