fevereiro 03, 2010

Os deuses no exílio

FALAR DE religião tornou-se uma ocupação gravíssima nos últimos tempos, o que não é descabido. Mas um lançamento da editora Iluminuras, na coleção Pólen, traz uma brisa de humor e fantasia ao tema.
Trata-se de "Os Deuses no Exílio", que o poeta alemão Heinrich Heine (1797-1856) escreveu nos seus últimos anos de vida, em Paris.
Essa prosa levíssima, em que se trançam lendas medievais, comentários contemporâneos e personagens extravagantes, foi publicada primeiro em francês, na apropriada data de 1º abril de 1853; veio depois uma versão em alemão.
Os tradutores dão conta das duas versões, e o volume da Iluminuras inclui, além de dois excelentes ensaios críticos, textos de Théophile Gautier e Eça de Queiroz, inspirados na obra de Heine.
A "teoria" do poeta, ao mesmo tempo cômica e melancólica, perde um pouco se apresentada bruscamente, mas aqui vai. Os antigos deuses da Grécia, na verdade, existiram de fato. Vivem escondidos até hoje, nos mais variados disfarces e nas mais humildes ocupações.
Ao lado de uma cabra velhíssima e de uma águia depenada, Júpiter se arrasta caçando coelhos numa ilhota do mar do Norte. Marte, o deus da guerra, foi visto servindo como lansquenete nas tropas de um general alemão.
Outro deus grego, ao que se conta, anualmente aparecia vestido de monge a um barqueiro tirolês. Pagava para usar a balsa do bom homem, durante a noite, devolvendo-a ao amanhecer.
O barqueiro um dia se ocultou na embarcação, para ver o que acontecia. Aportam a uma ilha onde homens de pés de cabra e mulheres enlouquecidas se entregam à orgia.
"Caro leitor", escreve Heinrich Heine, "ia me esquecendo de que você fez seus estudos e é perfeitamente instruído, de modo que, desde as primeiras linhas, compreendeu tratar-se aqui de um bacanal, de uma festa de Dioniso".
Mas o barqueiro, que nada sabia de cultura clássica, foi denunciar a imoralidade no convento mais próximo. O abade dá uma risada, manda-o tratar da vida; era o próprio Baco quem se disfarçava sob o hábito monacal.
No meio dessas narrativas, que Heine encontrou em coletâneas do folclore germânico, aparecem personagens amalucados, com quem o narrador conversa. Um deles é Niels Andersen, velho baleeiro, obcecado pelo animal que costumava caçar.
A baleia, garante Andersen, aprecia muito a vida em família. "A pureza moral e a castidade das baleias são estimuladas muito mais pelas águas geladas (...) do que por princípios morais. Infelizmente, também é inegável que não tem senso religioso algum."
Ao contrário, diz um participante da conversa. Há muitos relatos de baleias que rezam, encostando-se em paredes de gelo, fazendo movimentos rítmicos de devoção. A tese é refutada: elas se esfregam no gelo para tentar livrar-se de ratos que as devoram sob a pele.
Com esse tipo de maluquice, Heine produz aquela impressão, também presente nos contos fantásticos de E.T.A. Hoffmann, de que em literatura tudo é possível. Não se pode prever o que vai aparecer no próximo parágrafo de um texto desses.
E o próprio significado da obra parece variar, num efeito furta-cor, segundo o ângulo com que a lemos. Seria, aparentemente, uma condenação da moral cristã, ou mais exatamente, da moral vitoriana. Os pobres deuses gregos, símbolos de uma época mais bela e poética, foram varridos pela dura doutrina dos padres da igreja.
Só que Heine, como bom romântico, não quer a volta dos templos de mármore. Baseia-se em lendas medievais; é um paganismo nórdico, sincrético, no qual o "reencantamento do mundo" espreitaria sob a égide de um cristianismo primitivo.
Afinal, os primeiros cristãos achavam que os deuses gregos não eram criações fictícias, mas demônios reais. Alguns cultos evangélicos, no Brasil, terminam concedendo às divindades da umbanda esse mesmo estatuto.
O capricho das crenças humanas, que Heine ironiza, reproduz também as variações da opinião pública e, em especial, os vaivéns da política francesa na época em que ele viveu.
Mutabilidade que não deixa de se refletir na forma literária do autor -ele próprio um exilado político. Dizem que se Deus não existe, tudo é permitido. Mas acreditar em Deus dá a muita gente a permissão para tudo também. Sempre há lugar para os demônios -enquanto Heine assiste divinamente, do seu exílio, ao espetáculo.

MARCELO COELHO

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