fevereiro 20, 2010

Aos apaixonados

"Dedico esta crônica aos apaixonados,
mesmo sabendo que servirá para nada:
é inútil falar aos apaixonados.
Os apaixonados só ouvem poemas e canções.
A paixão, experiência insuperável de prazer e alegria,
pelo fato de ser uma experiência insuperável de prazer e alegria, coloca o apaixonado fora dos limites da razão.
Todo apaixonado é tolo.
Pode ser que ele escute a fala da razão.
Escuta, mas não acredita.
Diz ele: "O meu caso é diferente!".
Tolo mesmo é quem tenta argumentar com os apaixonados.
Começa, pois, assim, minha inútil meditação
com um verso terrível de T.S.Eliot.
Ele está rezando.
Ele sabe que somente Deus tem poder para lidar
com a loucura da paixão.
Ele reza assim.
"...livra-me da dor da paixão não satisfeita
e da dor muito maior da paixão satisfeita."
Todo mundo sabe que paixão não satisfeita dói.
Mas poucos sabem que a paixão só existe se não for satisfeita.
A paixão é fome.
Ela só floresce na ausência do objeto amado.
Mas precisamente, ela vive da ausência do objeto amado.
Não se trata da ausência física, o objeto amado distante, longe.
A dor da ausência física tem o nome de saudade.
Saudade tem cura. A saudade é curada quando o seu objeto volta.
A dor da paixão é diferente. Não tem cura.
A saudade do objeto amado, mesmo quando ele está
presente, é o perfume característico da paixão.
Cassiano Ricardo sabia disso e escreveu.
"Por que tenho saudade/de você, no retrato, ainda que o mais recente?/ e por que um simples retrato/ mais que você, me comove, se você está presente?"
Que coisa mais esquisita! como pode ser isso?
Como se pode sentir saudade de algo que está presente?
A resposta é simples: a gente sente saudade de uma pessoa
presente quando ela está se despedindo.
Cecília Meireles, desenhando sua avó morta,
a quem ela muito amava, disse:
"Tu eras uma ausência que se demorava;
uma despedida pronta a cumprir-se".
Dirão  "É natural; um dia ela possuirá o objeto da sua paixão.
Mas a 'dor muito maior'
da paixão satisfeita não tem mais esperanças.
O objeto se desfez.
Ela vive na tristeza do objeto perdido."
Escrevi uma estória sobre isso.
A Menina e o Pássaro Encantado.
Mas ela sofria porque o Pássaro era livre.
O Pássaro Encantado era sempre uma ausência que se demorava,
uma despedida pronta a cumprir-se.
O Pássaro lhe disse que era preciso que fosse assim,
para que eles continuassem apaixonados.
Ele sabia que a paixão não ama pássaros em vôo.
Mas a menina não acreditou. Prendeu-o numa gaiola.
Gaiola? Hás as feitas com ferro e cadeados.
Mas as mais sutis são feitas com desejos.
Esquisito o que vou dizer: a alma é uma biblioteca.
Nela se encontram as estórias que amamos:
"Romeu e Julieta", "Abelardo e Heloísa", "O paciente Inglês",
"As pontes de Madison", "O Amor Nos Tempos Do Cólera",
"A Menina e o Pássaro Encantado".
As estórias que amamos revelam a forma do nosso desejo.
Delas escolhemos uma, é a nossa gaiola.
Gaiola na mão, saímos pela vida à procura do nosso Pássaro.
Quando imaginamos havê-lo encontrado, uh, que felicidade!" 
Ficará feliz em nossa gaiola.
Será o amante da nossa estória de amor:
eu prá você, você prá mim...
Nós colocamos lá dentro e pedimos que nos cante canções de amor.
Acontece que o Pássaro também tinha a sua estória. E era outra. Todo Pássaro deseja voar.
Ele bate suas asas contra as grades, suas penas perdem as cores
e o seu canto se transforma em choro.
E, de repente, ele se transforma.
Não mais o reconhecemos, é um outro.
Essa é a razão por que a dor da paixão satisfeita é muito maior.
Contada assim, a estória parece ter um vilão e uma vítima.
A verdade é que os dois são vilões, os dois são vítimas.
O desejo da gente é sempre engaiolar o outro
e levá-lo pelos caminhos que são nossos. Isso vale para tudo: marido-mulher, pai-filha, mãe-filho,patrão-empregado,
professor-aluno...
Não admira que Sartre tenha dito que "o inferno é outro."
Não haverá saída.
Lembre-se de um pequeno poema de Pearls,
que sugere uma relação sem gaiolas:
"Eu sou eu.
Você é você.
Eu não estou nesse mundo para atender às suas expectativas
E você não está neste mundo para atender às minhas expectativas.
Eu faço a minha coisa.
Você faz a sua.
E quando nos encontramos
É muito bom..."

Rubem Alves 

Um comentário:

Anônimo disse...

Sou tola e apaixonada
mas não fico engaiolada
assim que vôa meu desejo
tenho outro e não sossego

abr
Lalá