janeiro 16, 2010

Maravilha Curativa

Tínhamos sempre um vidrinho na geladeira lá de casa. Quedas, cortes, espinhas, topadas, inchaços, picadas, queimaduras, entorses, para tudo a Maravilha Curativa era um santo remédio. Na farmácia doméstica, desde os tempos da nonna, era item essencial.
E foi imediatamente do que me lembrei ao ler sobre o PNDH3.
Essa é a Maravilha Curativa do Governo Lula. Serve para vários, se não quase todos, os males do Brasil: resolve o problema da mentira na qual vivemos até agora, pois cria uma Comissão da Verdade. O nome é esse mesmo. Da Verdade. Usamos muito as palavras sem nos deter em seu real significado.
Vou me valer de Antonio Houaiss, até porque é justo que eu consulte alguém que foi muito prejudicado pelos acontecimentos que a Comissão da Verdade quer examinar. Pois bem, são sete os enunciados para esse substantivo feminino (claro, só podia ser feminino). No primeiro, Houaiss nos informa que verdade é a propriedade de estar conforme com os fatos ou a realidade; exatidão, autenticidade, veracidade. No sétimo, ele se vale da filosofia pragmática de Nietzsche para nos explicar que a verdade é pluralidade inesgotável e frequentemente contraditória de enunciados ou discursos que, em vista de suas conseqüências práticas, se revelam úteis ou favoráveis aos interesses de indivíduos, grupos, ou da humanidade em geral.
Quem quer que tenha redigido esse catatau era usuário da Maravilha Curativa, disso não tenho dúvida. Tem de tudo um pouco, ou um pouco de tudo, como queiram: temas com os quais qualquer um pode concordar, outros que encontrariam apoio na maioria da sociedade, outros que seriam aprovados por imensa parcela de cidadãos, misturados a verdadeiras barbaridades, a atentados abomináveis contra a democracia, a desejos de vingança burra e de sede desenfreada pelo poder total sobre corações e mentes dos brasileiros, para usar feliz expressão norte-americana.
Quem pode ser contra que se descubra o nome do facínora ou facínoras que mataram Rubens Paiva? Quem pode ser contra o direito das famílias de saberem onde está o corpo de um de seus membros e quem o escondeu onde está? Mas também quem pode ser contra saber o nome dos desgraçados que atentaram contra o aeroporto dos Guararapes em 1966? Essa é uma das verdades da filosofia nietzschiana, depende do interesse de cada grupo? Ou a verdade é uma só?
A violação dos Direitos Humanos é um dos mais graves crimes que o Estado pode cometer. Concordo. Muito mais grave o crime do carcereiro que mata um encarcerado do que o crime que levou o criminoso a ser encarcerado. Mas ambos são crimes. E ambos devem ser punidos se o objetivo do Programa Nacional de Direitos Humanos é fazer o Brasil ver que o crime não compensa, que a impunidade acabou! Que depois da Maravilha Curativa3, seria letra morta em nossa vida.
Já seria um objetivo e tanto para qualquer programa de qualquer governo. Mas não ficou só nisso porque o governo não se conforma em revolver anos e anos de nosso passado em pleno ano eleitoral. Achou que isso era pouco para quem tem tanta força. Por exemplo, tem uma jabuticaba entre as 80 páginas: “um marco legal estabelecendo o respeito aos direitos humanos nos serviços de radiodifusão e a criação de um ranking nacional de veículos de comunicação comprometidos com os princípios de direitos humanos".
Como assim, um ranking nacional dos veículos de comunicação comprometidos com os princípios de direitos humanos? A revista Caras, onde fica nesse ranking? E a Playboy? E a G magazine? A TV Brasil seria um exemplo de ótima colocação no ranking? E as estações voltadas para fazer o ouvinte se encontrar com Jesus? Essas seriam hors concours?
Quem poderá ser a favor desse ranking que nada mais é do que censura com outro nome? E quem é o gênio da raça que vai determinar o “marco legal” que estabelece a linha divisória entre o respeito e o desrespeito aos direitos humanos nos serviços de radiodifusão? Será que cantar “Nega Maluca” na rádio desrespeita os direitos dos negros? Será que dizer “os mais pió vai pás Clínicas” desrespeita os pouco instruídos? Será que dizer que “Lula, o Filho do Brasil” é um filme chato desrespeita os direitos do homenageado e sua família? E, mais grave, será que a retransmissão da Oração dos Corruptos desrespeita o direito que os corruptos têm de rezar em conjunto?
Quem pode ser contra um debate sério sobre a descriminalização do aborto? Ou sobre a união entre homossexuais? Que pode trazer como conseqüência a adoção de crianças por casais do mesmo sexo? Ser contra por ser contra, sem debater o assunto? E não me venham dizer que isso foi fartamente debatido pela sociedade. Não foi não.
Há mais: quem é contra a taxação das grandes fortunas, com exceção dos triliardários? Mas não seria mais simples criar várias faixas de IR do que ir para o complicômetro de taxar as grandes poupanças? E quem pode ser contra a fiscalização da rotulagem dos transgênicos?
Outra gracinha: claro que todos aprovam planos de saúde mais baratos, que é a cenoura com que nos acenam. Mas não era melhor um Programa Nacional de Direitos Humanos que exigisse do Governo Federal o cumprimento de sua obrigação constitucional e usasse a barbaridade de dinheiro que retira de nossos bolsos, anualmente, para nos oferecer hospitais públicos de qualidade? Taí uma boa coisa para M. Lulà copiar das terras de M. Sarkozy: o serviço nacional de saúde da França.
Por enquanto a Maravilha Curativa3 só conseguiu a mágica de eliminar duas palavrinhas: “repressão política”. Vamos ver se ela ainda é maravilhosa quando o Congresso nos der a honra de voltar ao batente. Eu aqui fico na torcida para que ela se evapore. O vidro não foi bem fechado e com essa canícula... há boas chances.

MARIA HELENA RUBINATO RODRIGUES DE SOUSA
no Blog do Noblat

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