janeiro 06, 2010

Cama e cozinha (link para o trailer)

MEU INTERESSE pela culinária continua baixíssimo, mas mesmo assim fui ver "Julie & Julia", filme de Nora Ephron há algum tempo em cartaz. É simpático, simpático, simpático. Algumas pessoas me disseram que saíam do cinema morrendo de fome, loucas para gastar fortunas em equipamentos de cozinha, dispostas a entrar nos mais proibitivos restaurantes franceses da cidade.
Não tive essa reação. Parece um pouco a daqueles casais de 30 anos atrás, que depois de ver "O Último Tango em Paris" voltavam para casa com algumas "ideias" para o fim de noite.
Manteiga, no seu uso mais convencional, "Julie & Julia" tem de sobra. Há mesmo no filme uma vontade de escandalizar pelo "culinariamente incorreto", assim como era "sexualmente incorreto" o comportamento de Marlon Brando com Maria Schneider no drama de Bernardo Bertolucci. No papel de Julia Child (a supercozinheira que, na década de 1950, ensinou a culinária francesa para os americanos), Meryl Streep esgana pescoços de pato, encharca peixes em toneladas de colesterol puro, lambuza de caldas açucaradas claras de ovos batidas com fúria.
Uma história paralela se desenrola no presente: a jovem Julie (Jane Lynch) resolve, sem saber muito por quê, começar um blog no qual se compromete a fazer todas as receitas do livro de Julia Child ao longo de um ano. Vemos então lagostas vivas afogadas em água fervente, gelatinas de carne nojentas se espatifando no chão, carcaças de ave costuradas com agulha e linha.
Não, nada disso me abriu o apetite. Tudo é feito para ser mais chocante e transgressivo do que apetitoso. A relação das cozinheiras com sua matéria-prima talvez seja, aliás, o único aspecto transgressivo desse filme -no qual tudo se passa muito direitinho, sem antagonismos reais, destinado, desde o início, a dar impecavelmente certo, como uma receita de bolo nas mãos de uma boa dona de casa.
Para o filme ficar minimamente interessante, é preciso inventar alguns tropeços e dificuldades ao longo do caminho. Uma briguinha de casal aqui, uma leve ameaça de macartismo ali, alguns problemas com editoras e jornalistas lá, um cozido que passa do ponto acolá... Nada que dure mais de dois minutos. A impressão de superficialidade é inevitável, mas isso não significa que a análise do filme deva parar por aqui. Por trás dessa utopia culinária, tão limitada e intranscendente, acho que existem outras coisas em jogo.
Estamos, na verdade, em plena ideologia pós-feminista e pós-liberal. Julia e Julie, com um intervalo de cinco décadas, lutam e triunfam bravamente na cozinha. Mas a vitória, o sonho, o Paraíso delas se realiza em outro lugar. Melhores do que qualquer "coq au vin", os maridos de ambas cumprem os ideais de toda mulher: atenciosos, ativos sexualmente, estáveis. Se o velho clichê dizia que "lugar de mulher é na cozinha", o filme de Nora Ephron dá a resposta, pós-feminista, de que isso não está nada errado, desde que lugar de homem seja no leito conjugal.
O lado "pós-liberal" de "Julie & Julia" provavelmente se revela no modo com que se encara o tema, tipicamente norte-americano, do sucesso e do fracasso. Gosto muito dos filmes de Hollywood em que o personagem é espetacularmente bom naquilo que faz -jogador de pôquer, físico nuclear, taxidermista, pouco importa.
Ocorre que, no roteiro clássico, o herói tem de enfrentar todo tipo de inimigos: os descrentes, as grandes corporações, a família, o governo... Antagonistas desse tipo, no filme de Nora Ephron, reduzem-se a tênues memórias dos que já foram.
A vidinha de Julie, numa Nova York pós-atentados de 2001, é marcada pelo tédio de um serviço burocrático, na área de assistência social da prefeitura. Não estamos no mundo do trabalho opressivo, da busca frenética do lucro.
A independência pessoal não é ameaçada por ninguém: o caminho para a realização, para o "empreendedorismo", está ao alcance de todos. Basta começar um blog na internet, ter um bocado de persistência, que tudo dá certo. O sonho americano pode realizar-se mais uma vez. Mais do que nunca, aliás, pois são distantes, imaginárias, acidentais as forças que conspiram contra ele. Fique em casa, capriche na receita, e "bon appétit".

MARCELO COELHO

Um comentário:

Anônimo disse...

ACHEI O FILME FRACO E SEM GRAÇA.