dezembro 05, 2009

O “jeitinho” destroçado

"O antigo “homem cordial” aproxima-se da extinção, numa sociedade que passou a ter horror ao diálogo.
Cena 1: o “eu” comercial
Numa feira em Paris (praça Monge), pedi uma dúzia de figos. Lá você não pode se servir da fruta, como aqui. É o feirante que as coloca no saquinho. E vi que ele colocou dois figos avariados. Reclamei. E ouvi a seguinte resposta:
- Por que o senhor acha que EU deveria ficar com todos os figos estragados para mim?
Fiquei sem reação. Havia algum tipo de justiça embutida na sua frase. Não a justiça que imagino, nem a que desejo, mas posso supor uma longa história de transações, talvez vindas do tempo da Revolução Francesa, até se chegar a essa formulação de que o inservível também deve ser repartido com critério de igualdade.
Cena 2: aos vencedores, as bananas – o “nós” comercial
Fiquei imaginando como, no Brasil, é a negociação de uma dúzia de bananas. Você sempre pode escolher uma 13ª, se uma das aderidas ao cacho não estiver perfeita. O feirante poderá, gentilmente, lhe oferecer ainda uma 14ª. Ele não “arca com o prejuízo”. Sabe que aquela operação comercial é uma em uma longa série. Você voltará, comprará por anos seguidos, diluindo aquela “banana a mais” em infinitas transações. Ele aposta que aquela relação pessoal transcenderá a operação comercial momentânea. É o ciclo longo das trocas comerciais que permite incluir ações cujo objetivo não é o lucro imediato.
Pois bem. Faz pouco tempo que a Assembléia Legislativa de São Paulo aprovou uma lei, já em vigor, que proíbe a venda de bananas por dúzia nas feiras. Assim como é proibido fumar em bares e restaurantes, e tantas outras coisas que, pouco a pouco, vão sendo proibidas aqui e ali. São leis miúdas, que enquadram os cidadãos em novas normas que, vistas em conjunto, parecem indicar o surgimento do “Estado de irrelevância máxima”, depois do Estado de “tolerância zero”. Mas, por quê?
O cordial
Filosofar sobre a história é hábito que vem de longe e, entre nós, gerou o mito do homem cordial. Pouco desse mito se deve a Sergio Buarque de Holanda e seu modernista “Raízes do Brasil”. De verdade ele esteve entranhado em nós mesmos por séculos, como chave conveniente de compreensão das relações sociais entre brasileiros.
Esse mito nos conta que as relações familiares, de amizade e intimidade, precedem as relações públicas. Por isso a lei que contrarie essas afinidades parece sempre uma violência, preferindo-se sempre o “jeitinho” para acomodar as situações onde interesses contraditórios se apresentam. Recentemente os legisladores renunciaram a esse mito, trabalhando com afinco pela sua destruição. A questão é: em seu lugar instalarão um ideal melhor de relação entre brasileiros?
O “jeitinho” não nos diz da igualdade, mas dos ajustes frente às desigualdades notáveis. É um mecanismo transacional cujo resultado é satisfatório para ambas as partes. Ninguém se sente lesado publicamente, embora, no íntimo, possa não estar plenamente satisfeito. O “jeitinho” desfaz impasses, funciona como um fluido social numa sociedade marcada por contrastes.
A mitologia sobre a nação brasileira construiu-se entre os anos 1870 e 1930. De todas as idéias discutidas no período, acabaram prevalecendo aquelas que falavam de um povo cordial, de uma nação católica, da miscigenação superadora dos preconceitos raciais e assim por diante. Mas, nas últimas décadas, esse mito vem sendo paulatinamente destruído.
Religião, raça e foie gras
Tomemos a religião. Antes, além do catolicismo, que entrou em crise mundial, falava-se no sincretismo religioso: o candomblé era genuinamente “nacional”. Uma religião popular que convivia bem com o catolicismo ortodoxo das elites. Mas, “para sair da crise”, os católicos lançaram produtos de apelo mais populares, como o movimento de “renovação carismática”.
O relaxamento do rito ortodoxo romano, a laicização do culto, visava também enfrentar a propagação das igrejas protestantes e pentecostais. Hoje a população crente se divide em uma infinidade de confissões religiosas que mais se assemelham a times de futebol. Nessa feição, tornou-se uma espécie de “escuderia’’ e escorregou da esfera privada da vida para a esfera pública. A sua ostentação tornou-se motivo de orgulho.
Comprei recentemente um pacotinho de biscoitos que estampava: “Deus é fiel!”. Provavelmente seus produtores não esperam ganhar o mercado dos ateus ou católicos. Deus fiel é o nome de um nicho de mercado, seja de biscoitos ou de fé.
Recentemente, um intelectual, defensor de primeira hora da candidatura de Marina Silva à Presidência, não se sentiu à vontade para vir a público e -declarando-se adepto do “darwinismo generalizado” (sic) e não vendo necessidade da candidata ser categórica sobre assuntos como “educação científica separada da religiosa nas escolas confessionais”- afirmar que, “antes de tudo, não se deve esquecer que são questões sobre as quais há sérias controvérsias ético-científicas que racham a sociedade brasileira”? Via ele nos adversários uma certa intransigência “porque ela assume sua condição de evangélica”1.
O presidente Geisel era luterano. Talvez por isso mesmo aprovou o divórcio. Mas pouco se alardeava sobre sua opção religiosa. Era um assunto privado, como a sua viuvez. Por que, hoje, alguém se sente estimulado a de definir publicamente em termos religiosos, mesmo quando visa presidir todos os brasileiros? Por que se erigiram “sérias controvérsias” onde estava certo que religião é religião, ciência é ciência?
Tomemos outro exemplo. As relações raciais no Brasil. Pretos e brancos são “iguais” perante a lei, embora saibamos que as relações históricas entre ambos sempre foram de dominação. O que resultou na cor da pobreza: ricos são invariavelmente brancos, pretos são em sua esmagadora maioria pobres. E os pobres são a maioria da população.
Foi José Sarney (!) que recentemente registrou que o IBGE havia constatado que os negros, “pardos” e índios são, pela primeira vez na história, a maioria da população brasileira, restringindo-se os que se autodeclaram brancos a 48,4%2. Para ele, o sonho racista do século 19, que antevia o branqueamento, cede ao peso forte da miscigenação triunfante.
Talvez por isso mesmo, entre as camadas populares, o preconceito de cor não grassou como nos países de anglo-saxões. Todos os pobres sabem que tem um mesmo destino miserável, independente da cor da pele. E brancos pobres e negros se casam, produzindo mulatos. Brancos ricos evitam os negros como parceiros matrimoniais. Mas o que pode fazê-los mudar, senão uma nova cultura e educação?
O Estado tomou as suas precauções contra o racismo que porventura pudesse se manifestar na esfera pública. A Lei Afonso Arinos, por exemplo. Mas agora surge um projeto denominado Estatuto da Igualdade Racial, que, além de reafirmar a legislação existente contra a discriminação racial na esfera pública, cria um fundo público para financiar “ações inclusivas” voltadas para os negros. Uma generalização da questão das cotas nas universidades. Uma legislação que, ao recriar a polarização negro/branco, que a mitologia sobre a nação suprimiu, divide os pobres em beneficiados e não-beneficiados por essas políticas públicas.
Vejamos outro exemplo. Há gente no mundo que acha o canino um dente criminoso. Querem que o Estado regule seu uso. Nada de comer foie gras, pois a sua produção faz o animal sofrer. Daí é um passo para se exigir dos frigoríficos (antigos matadouros...) que adotem “métodos humanitários de abate” (sic).
O multiculturalismo, a militância ambientalista, a crise das religiões –fenômenos mundiais, enfim-, tudo tem contribuído para dividir os brasileiros segundo novos recortes e novas normas de relacionamento entre os diferentes. A vida privada, as relações interpessoais vão se estreitando, e o Estado se insinua como árbitro de sujeitos que, antes, se acreditava, sempre encontrariam termos de convivência satisfatórios.
O caso do Estatuto da Igualdade Racial é bem interessante. Num país onde, por imposições democráticas, “raça” se tornou um status eletivo, autodeclaratório, como se pode conceber que, por uma autodeclaração, alguém possa acessar fundos públicos de forma legítima?
É uma subversão legal sem precedentes, a violação da igualdade republicana da lei. Ao tratar “pobres negros” de modo diferente de “pobres brancos” cinde-se irremediavelmente a maioria da população. E nem mesmo se pode alegar “justiça social”, pois os recursos dos impostos ordinários que financiariam essa política não penalizam a riqueza de modo preciso e dirigido.
Todos sabemos do papel crucial que Gilberto Freyre desempenhou ao reverter o valor ideológico da raça na formação social brasileira. O que antes parecia negativo, se tornou claramente positivo. Outros intelectuais, como Manoel Bomfim, mostraram como o critério de escolha racial só era admissível no plano doméstico, isto é, das escolhas matrimoniais –coisa com a qual Darwin, o campeão da igualdade racial, jamais discordaria: só no plano subjetivo os aspectos secundários da raça poderiam ser levados em conta3.
Isso nos diferenciava fortemente dos países anglo-saxões, onde as diferenças raciais foram objeto de legislação discriminatória. Para nós, brasileiros, nunca fez sentido esse tratamento, até essa proposta de Estatuto da Igualdade Racial.
O “outro” fraco e desprotegido
É impressionante como o Estado se projeta como defensor do “outro” na legislação que proíbe fumar em locais públicos. A legislação paulista, mais rígida do que a federal –que aposta mais na “separação” do que no “banimento”- é, em muitos círculos sociais, comemorada como a voz e o direito dos fracos e oprimidos pelo fumo. Como se o acomodamento de interesses contraditórios fosse absolutamente impossível.
É por esta senda –a debilidade do “outro”– que avançam as novas normas que, pouco a pouco, vão destroçando o jeitinho brasileiro. Antevê-se, assim, uma sociedade que tem horror ao diálogo, às relações de camaradagem, à transação entre sujeitos privados. Desenha-se uma cidadania apoiada no “não pode” e na divisão regrada: racial, religiosa, de hábitos de consumo e assim por diante. É difícil imaginar que, por essa via, chegaremos a um Brasil melhor.
Cena 3: o direito ao desgosto
Percorro uma festa popular em Mazagão, Amapá. Infinitas barracas improvisadas oferecem uma variedade enorme de músicas. Tão alto, que um som sufoca o outro, tecendo uma ininteligibilidade geral. Estilos populares de gosto mais que duvidoso. Comento com minha anfitriã:
- Essa situação é horrível! Não se consegue um único lugar de paz para os ouvidos.
E ela responde, indignada:
- Vocês (sic) precisam aprender a respeitar o gosto dos outros!
Ok, pensei com meus botões. Mas quando é que vão aprender a respeitar o desgosto dos outros?
Mais do que para o mundo chato, caminhamos a passos largos para um mundo repressivo, onde a cordialidade e o jeitinho serão meras curiosidades históricas. Inicia-se a época da arqueologia do brasileiro, extinto ao se transformar em cidadão globalizado.


Publicado em 2/10/2009 - Carlos Alberto Dória
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