novembro 18, 2009

Nicolau

"Nicolau era o papagaio de minha avó. Naquele tempo, além dos agregados familiares que moravam e trabalhavam na casa, só saindo quando se casavam, ainda se criavam muitos bichos; soins, gatos, cachorros, e não faltava um papagaio que comia os restos de miolos de pão com café que sobravam na mesa. Assim era na casa da minha avó. Viviam com muita simplicidade, mas a população de agregados e bichos parecia não pesar no orçamento familiar.
Nicolau era especial. Com seu olhar redondo e vidrado, pés virados para dentro, emprestava até seu nome para o apelido de quem andava meio cambota. Cantava o dia todo.
ó preta ó preeta, lá do sertãââo, jogando as cartas, no meio do chão. O resto da canção Maria lhe ensinava cantando, mas ele nunca aprendia a ir até o fim. Vivia numa arandela de flandre pendurada lá em cima da parede da cozinha. Dali, sempre cambaleando, vislumbrava todo o movimento da casa. Se alguém aparecia, ele ia logo ironizando antecipadamente a atenção que lhe dariam: "dê cá o pé, meu louro", falava. Pela manhã irritava a todos porque acordava cedo e ficava repetindo as mesmas palavras: Maria, quero café, café, café!, enquanto Maria ainda fazia o fogo. Durante o dia, Nicolau tinha vários momentos de exaltação discursiva, mas os matutinos e vespertinos eram inevitáveis. Todo o repertório de palavras, canções e ruídos que aprendera na floresta eram repetidos ininterruptamente por horas a fio, até ele se acalmar.
Os netos de minha avó gostavam muito de Nicolau, que quando nos via passando pela cozinha ia logo dizendo: camone boy! Tinha aprendido a expressão conosco, que víamos os filmes de cowboys e aprendêramos a cumprimentar as pessoas com essas palavras, as únicas que entendíamos da película. Como casa de avó era para se fazer tudo que não se fazia na casa dos pais, já entrávamos correndo, passando por dentro dos quartos e salas, atravessando a cozinha, só parando no quintal. Ali costumávamos reinterpretar as cenas dos filmes a que assistíamos. Nos dividíamos entre bandidos e mocinhos, cada um com um graveto de pau que funcionava como revólver. Nos escondíamos todos e, como faziam os mocinhos, repetíamos seus gestos de colocar só uma pequena parte da cabeça de fora do esconderijo para enxergar o inimigo, atirar e depois nos encolhermos novamente. Aí entrava toda sorte de sons que ouvíamos no cinema e que podiam reconstruir a atmosfera daquelas cenas no deserto do Arizona. Havia momentos de barulheira total dentro de casa, quando resolvíamos reinventar as batalhas entre índios e brancos, gritando como os índios e correndo como cavalos desde o quintal até a porta da rua. Hoje, quando me lembro, parece que minha avó e o resto da família tinham uma espécie de botão que desligavam para não ver nem ouvir tal algazarra na casa. Ninguém saía de suas funções, ninguém reclamava do barulho ou mesmo da sujeira que fazíamos por lá! Era como se cada grupo vivesse seus fantasmas sem que o outro interferisse. Mas um dia Nicolau pregou uma peça nos netos da velha, acabando assim com aquela invasão de bárbaros em seu território. Certa hora, quando estávamos mais absortos na nossa encenação de bandido e mocinho, ouvimos uma voz que passou a nos denunciar seja lá onde estivéssemos: BUÁ TILLLL. Era Nicolau que tinha aprendido a, como nós, imitar o som das balas dos mocinhos e bandidos, ricocheteando nas pedras do deserto. Assim, onde pudéssemos nos esconder ele estaria a falar BUÁ TILLL, entregando ao grupo inimigo nossos esconderijos.
Pobre Nicoláu! Acabou seus dias de forma trágica!
Quando meu avô morreu, a comoção da família foi intensa. Um mês de cama e mais seis dias em coma e o velho por fim se foi. Só se ouviam os lamentos dos filhos: papai morreu, papai morreu, papai morreu! Luto absoluto por um ano, falavam pra costureira que faria os vestidos de toda a família. Só os netos usariam três meses de luto fechado e o resto do ano aliviado, decidindo nossos destinos baseados numa tradição que eu tomava conhecimento pela primeira vez. Em casa, parecia tudo vazio, A vida estava suspensa. Só funcionavam Maria, que apesar do seu luto cozinhava todas as roupas da família na tinta preta para que outras cores não entrassem naquele tempo, e as reuniões dos membros do clã para relembrar afetos e emoções do tempo em que o velho era vivo. Me lembro dessas intermináveis reuniões em torno da mesa, onde aos poucos a memória do velho ia sendo purificada e enriquecida. Na hora das refeições, todos comiam calados. Nem Nicolau perturbava. De repente um dos membros da família ficava parado. Se estivesse comendo, o talher parava onde estava, a respiração não se efetuava e a cabeça ficava baixa. O tempo se abria para se ouvir o som do seu choro alto e convulsivo. Aquilo era para mim um ritual novo, que eu nunca tinha presenciado. Sabia que meu avô tinha morrido, mas não sabia que o luto seria sentido e até provocado através de rituais. Nem que o do meu avô levaria tanto tempo e de forma tão trágica e grave. A casa ficou triste feito um prato de macarrão na água e no sal. Feito vestido velho e desbotado. O peso da morte foi tão grande que até as brincadeiras não tinham como se realizarem. Olhávamos uns para os outros e nada engatava, tão impotentes que estávamos para manifestarmos qualquer forma de vitalidade. Só se ouviam os lamentos que ecoavam dentro de casa: papai morreu, papai morreu, papai morreu! Assim foi durante muitos dias; e as crianças, sem se darem conta, foram envolvidas no mesmo resguardo que o tempo exigiu.
As emoções da família só começaram a reaparecer, voltando ao rebuliço habitual, no dia em que fui entrando na casa e percebi um grande alvoroço que entrava pela cozinha e saia pelo quintal. Era minha mãe, com um cabo de vassoura, que corria bravejando atrás de Nicolau, que tentava se defender gritando: Ai! Papai Morreu! UHHHHHHHHH! Papai Morreu!UHHHHHHHHH! Coitado do Nicolau! Não acredito que estivesse fazendo pouco dos exageros emocionais da família, como acreditou minha mãe. Para mim ele estava também de luto. Ou numa compreensão menos dramática, ele estava no mínimo feliz por ter acrescentado mais algumas palavras ao seu repertório.
Nunca mais ouvimos falar de Nicolau!"
Mércia Pinto/2009

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