novembro 24, 2009

Macacos somos todos

IMAGINEMOS: existe um caminho; existe um relógio perdido no meio do caminho; é lógico pensar que o relógio não surgiu por acaso. Foi o produto de mãos informadas, que juntaram partes microscópicas para que o relógio, enfim, funcionasse.
Essa belíssima metáfora pertence a William Paley (1743-1805). E ela resume, com a simplicidade só acessível aos grandes, o credo da ciência natural na Inglaterra do século 19: apesar das teorias "evolucionistas" de Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) ou Erasmus Darwin (1731-1802), Deus é o supremo relojoeiro.
O relógio de Paley deixou de funcionar há precisamente 150 anos quando o neto de Erasmus Darwin, Charles Robert, publicava "A Origem das Espécies". E se o relógio fosse o produto de um longo processo de seleção e adaptação sem nenhum relojoeiro por detrás? A hipótese, hoje, parece-nos evidente. Eu próprio, lendo a "Origem..." e o brilhante ensaio de Janet Browne sobre o livro, imitei a exclamação de Huxley, o "buldogue de Darwin": "Mas como é que eu não pensei nisso antes?".
A pergunta faz sentido. Mas o mais interessante sobre a "Origem..." é que a obra, tal como a teoria que ela apresenta, é também um produto de acasos: aventuras biográficas, leituras ocasionais e observações empíricas experimentadas por Darwin nos primeiros 50 anos da sua vida.
Começa por ser um produto da sua frustrada passagem por Edimburgo, para cursar medicina e seguir as pegadas do pai. Sabemos que Darwin acabaria por abandonar o curso, horrorizado com a brutalidade de certas terapêuticas. Mas os anos na Escócia, ao permitirem os primeiros contactos com as teorias "evolucionistas", plantaram na cabeça do jovem Charles as primeiras inquietações: e se os seres não são o resultado de um único ato da criação?
A resposta a essa possibilidade seria avançada a bordo do Beagle: viajando pelo mundo, Darwin confrontava-se com a essencial diversidade dele. Mas não apenas com a diversidade visível; também com a falta de estabilidade inferida: a sul de Buenos Aires, por exemplo, o naturalista encontrava fósseis de mamíferos com traços anatômicos semelhantes, mas não iguais, aos das espécies contemporâneas.
A juntar a essa "instabilidade" e "descontinuidade" das espécies, as horas a bordo eram preenchidas com a leitura do geólogo Charles Lyell (1797-1875). E se Lyell desaprovava a "transmutação" das espécies, toda a sua teoria geológica apontava no sentido inverso: as mudanças da Terra não eram conduzidas por nenhum "relojoeiro" divino. Eram o resultado de múltiplas, pequenas e graduais alterações naturais, ao longo de períodos de tempo imensamente longos.
Quando regressou à Inglaterra em 1836, Darwin tinha uma certeza: no mundo natural, as espécies variam e "transformam-se". Faltava explicar como.
E seria Thomas Malthus (1766-1834) a fornecer uma preciosa ajuda. Malthus era um cientista social "avant la lettre", para quem o crescimento demográfico suplantava a capacidade humana de produzir alimentos. Essa explosiva situação teria um preço: a fome, o conflito, a guerra -uma luta pela sobrevivência de todos contra todos em que os mais pobres e fracos estariam condenados a perecer.
Malthus oferecia, no fundo, uma conceitualização teórica para práticas banais que Darwin observava entre agricultores ou criadores de gado, sempre interessados em selecionar os melhores exemplares, dotados dos traços mais valiosos, para se reproduzirem ao longo de gerações. Deus não era o relojoeiro. A natureza encarregava-se de ajustar as peças do relógio, preservando os mais bem adaptados, preservando os seus traços mais vantajosos numa perpétua luta pela sobrevivência. E pela continuidade da espécie.
Converteu-se em clichê afirmar que o mundo nunca mais foi o mesmo depois da "Origem...". Feliz e infelizmente, o clichê é verdadeiro. Felizmente, a obra de Darwin é um exemplo de honestidade e rigor intelectual capaz de oferecer a mais poderosa explicação científica sobre o longo caminho da humanidade.
Infelizmente, Darwin não sobreviveria para testemunhar o que ideólogos ou fanáticos diversos acabariam por fazer com as suas ideias: uma defesa da subjugação e mesmo do extermínio de raças consideradas "inferiores" e "dispensáveis" por autoproclamados Super-Homens. Tivessem eles lido Darwin com atenção e aprenderiam que não existe motivo para triunfalismos ou distinções. Pretos, brancos ou amarelos, macacos somos todos.

JOÃO PEREIRA COUTINHO

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