setembro 11, 2009

O crime perfeito


"UM EDITOR português telefonou-me na passada semana e lançou o desafio: estarei interessado em escrever texto longo sobre o oitavo aniversário do 11 de Setembro? Convites desses não se recusam, sobretudo quando existe uma viagem a Nova York no horizonte. Saltei da cama, marquei o voo e, no purgatório da espera, mergulhei em oito anos de livros, filmes ou ensaios a respeito. Desiludido? Não direi. Mas oito anos são oito anos: falta-nos distância e perspectiva para entender realmente o que aconteceu naquela manhã de setembro. Ruído a mais, reflexão a menos. Pensava eu.
Pensava mal. Num dos intervalos das minhas pesquisas, encontrei um filme que alguém me ofereceu no último aniversário. Intitula-se "O Equilibrista", foi dirigido por James Marsh e até venceu o Oscar de melhor documentário na última cerimônia de Hollywood. Como foi que eu não vi? Imperdoável. Remediável. Se me permitem o exagero, não existe, até o momento, evocação mais perfeita sobre a efeméride. O que não deixa de ser irônico: o 11 de Setembro não é referido no filme uma única vez.
"O Equilibrista" é a história vagamente inacreditável de Philippe Petit, francês e funâmbulo. Um francês é fácil de identificar: "cherchez la baguette", como alguém diria, de preferência debaixo do sovaco. Um funâmbulo é, confesso, palavra nova. Eu, alimentado pelos circos da infância, só conhecia "trapezista", quando muito "equilibrista". "Funâmbulo" tem outra ressonância e, no caso de Petit, outra gravidade, no sentido literal do termo: um funâmbulo gosta de caminhar sobre o arame e sabe que a queda é fatal. Para Petit, duplamente fatal: pela ausência de rede e pela enormidade dos desafios. Desfilar no cimo de pontes ou monumentos não é para qualquer um.
Philippe Petit não é qualquer um. E lá o vemos, nas sequências iniciais da obra, levitando no ar entre as duas torres góticas da Notre-Dame, em Paris. Cá em baixo, admiração e espanto. Alguns aplausos. E, antes da cortina descer, a polícia sobe para o levar. Risco, encantamento, ilegalidade: haverá trilogia mais perfeita?
Existe, sim: transportar tudo isso para as Torres Gêmeas de Nova York. As torres que caíram em 11 de setembro de 2001, mas que surgem ao adolescente Philippe, meio século antes dos atentados, em revista francesa sobre a construção prometaica das ditas. Foi, como se diz nas novelas, amor à primeira vista. Fácil perceber por que: duas torres iguais, próximas e absurdamente altas estão mesmo a pedir um arame entre elas. E um Petit sobre o arame.
O namoro durou sete anos. Sete anos de viagens a Nova York, visitas às torres, treinos intensos em bosques e descampados. E o inevitável recrutamento do bando, porque todos os golpes têm um. Caminhar entre as torres é apenas o "grand final" de um longo processo de planeamento, assalto e intromissão.
O processo falha da primeira vez. Não falha na segunda: depois de aventuras mil, como convém às histórias de gângsteres, amanhece em Nova York. Dia 7 de agosto de 1974.
É o dia em que Phillippe Petit realiza o inacreditável: um passeio entre as torres.
Fixem a data e, se possível, substituam uma imagem por outra. Eis a principal virtude de "O Equilibrista": devolver-nos uma nostalgia intacta. Pensar no 11 de Setembro é pensar nas imagens e, mais, pensar com imagens: as duas torres, os dois aviões. A violência inaudita, quase irreal, do desabamento. O terrorismo também é isso: manchar com sangue e horror a memória dos lugares. Será possível pensar nas Torres Gêmeas de Nova York sem ter o rosto funesto de Osama bin Laden a pairar sobre elas?
É possível, se recuarmos a 1974 para encontrar o rosto sorridente de Philippe Petit no seu passeio aéreo e matinal. Como se o gesto, pelo seu descomunal desafio, fosse uma outra forma de afirmar que também existem crimes belos e perfeitos.
Crimes que cobrem de infâmia e primitivismo a barbárie do terrorismo islamita. É possível eleger as mesmas torres como alvo; é possível juntar o mesmo número de cúmplices para o crime; e, como se vê na saga de Petit, é possível cometer o crime e, como recompensa, ter também todas as donzelas do mundo à espera do seu herói. Cá em baixo. No solo. Na realidade. E não no paraíso imaginário onde os sexualmente inaptos gostam de se rodear com as suas virgens.
E tudo isso para quê? No filme, Petit confessa que essa foi a pergunta mais absurda que todos lhe fizeram depois do golpe. Não admira. Faz parte do gênero humano procurar todas as razões possíveis, exceto a razão evidente de que as torres estavam lá."

JOÃO PEREIRA COUTINHO

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