setembro 29, 2009

Dois dedos de conversa

"A REVISTA VIRTUAL "Slate" analisou há tempos um fenômeno que me intriga há séculos. Apertos de mão. Nenhuma metáfora: falo mesmo do momento banal em que duas pessoas se encontram, estendem as respectivas mãos e apertam-nas como sinal de reconhecimento social.
Para a revista, a arte está em declínio, e não necessariamente por culpa da gripe A. Está em declínio porque em declínio estão os cultores rigorosos do aperto. Posso confirmar o diagnóstico.
Todos os dias, nas minhas aventuras citadinas, a evidência estende-se literalmente à minha frente. Alguém oferece a mão. Eu ofereço a minha.
E, quando o aperto se dá, tenho a desagradável sensação de que agarro um órgão mole e amorfo, muito parecido com um pênis em estado flácido. A sensação de repugnância é extrema, e a minha vontade é fugir dali: no aperto de uma mão, revela-se um caráter. A maioria dos meus interlocutores não tem caráter nenhum. E o oposto também acontece: gente que não aperta, mas esmaga os ossos do parceiro. Como se um cumprimento fosse o pretexto ideal para descarregar toda a insegurança de uma vida.
O equilíbrio perfeito de que fala a "Slate", aquele cumprimento firme, gentil, sempre reforçado pelo contato visual direto, isso acabou. As pessoas apertam com muita força ou com nenhuma força. Por vezes, nem sequer apertam a mão toda; só os dedos. E raramente fitam o outro olhos nos olhos.
Mas a crise das mãos não está apenas no aperto. Está sobretudo na caligrafia. Sou professor há vários anos e testemunho a evolução estilística do fenômeno: estamos a regressar à caverna, e a pintura rupestre ameaça substituir séculos de refinamento visual.
São raros os exames legíveis. Pior: cresce o número de alunos que, chamados ao gabinete, têm de ler em voz alta os textos que escreveram.
Por vezes, nem eles próprios reconhecem o que escreveram, como se a própria letra fosse um elemento estranho. Todos, ou quase todos, preferem escrever no computador e entregar trabalhos na única caligrafia que estimam. Não a caligrafia do João, da Maria ou do Francisco.
Mas a caligrafia do sr. Times New Roman.
Como explicar a crise das mãos?
Não pretendo vestir o traje de ludita moderno e apontar o dedo à tecnologia reinante. A história da técnica é o cemitério dos luditas. Ou o anedotário deles: hoje, lemos as sentenças apocalípticas que se disseram sobre o telégrafo, a lâmpada elétrica, o telefone ou a televisão e sorrimos com o sentido de superioridade que define a nossa arrogância.
Mas também é impossível negar completamente que a tecnologia reinante tornou as mãos, como instrumentos tangíveis de reconhecimento ou comunicação entre seres humanos, largamente dispensáveis.
Uma sucessão de redes sociais permite que as pessoas se "conheçam", se "falem", e até se "cumprimentem", sem sentirem verdadeiramente que está um ser humano do outro lado. Ninguém aprende a apertar mãos porque, desde logo, não existem mãos para apertar.
E as teclas de um computador explicam o resto: a caligrafia, um exercício demorado que exigia concentração e disciplina, é vista hoje como perda de tempo quando o computador garante rapidez e eficácia.
Esse dogma esquece uma desconfortável verdade: escrever à mão era também pensar com as mãos. Pensar ao ritmo dos seus movimentos e desenhar palavras com a prudência e a precisão de quem não pode apagar tudo e começar tudo de novo.
Escrever era inscrever. Uma aproximação à eternidade.
Isso significa que estou pessimista sobre o futuro? Nem pessimista nem o contrário: o futuro, como dizem os ateus, a Deus pertence.
Pessoalmente, eu só conheço o passado: há 5 milhões de anos, os australopithecus desceram das árvores, experimentaram o bipedismo e libertaram as mãos. Nascia o Homo habilis, capaz de fabricar instrumentos, de os agarrar e, com eles, de caçar nas savanas. Estava aberto o caminho para que o Homo erectus, finalmente, descobrisse o fogo. E, com o fogo, a civilização.
Cinco milhões de anos depois, desconfio de que o meio em que vivemos será tão importante como foi no passado para o desenvolvimento físico e intelectual dos homens de amanhã. Não digo com isso que o futuro será dos manetas. Mas não excluo que as mãos entrarão em atrofia e que dois dedos cheguem para a conversa."


JOÃO PEREIRA COUTINHO

Um comentário:

Anônimo disse...

Com as novas tecnologias, dois dedos são mesmo aquilo que cada vez mais se usa para dois dedos de conversa! Pena que cada vez mais se percam os dois dedos de conversa com este sentido que se lhe quis dar! Mas que o aperto de mão continua a ter algo de muito especial...ahhh...lá isso continua. E como se tiram tantas elações de simples aperto de mão...mesmo todos esses apertos de dedos, de dois dedos, um do lado de cá e outro do lado de lá! acabam um dia sempre num aperto de mão! Bem haja o dito.