agosto 17, 2009

INFÂNCIA

"O pecado não morava ao lado. Estava em você. Coabitava com seus medos, suores noturnos, e assombrava detrás dos panos roxos que cobriam as imagens na Sexta-Feira da Paixão. Deus não era um negão no clipe da Madonna, mas um olho aberto na parede de todas as casas. Foi no século passado, quando ainda havia pecado do lado debaixo do Equador, quando se matava por amor, e Ele reinava solto, sorumbático, anotando o que acontecia nos terrenos baldios do subúrbio. Quem falasse a palavra “sexo” levava um tapa na boca.
Foi no tempo do pudor, do rubor nas faces, das anáguas e do espelho colado no sapato para roubar uma nesga da calcinha da professora. Foi não sei quando. Melhor esquecer.
Era uma geração de garotos virgens, de meninas tementes do raio supremo de serem chamadas galinhas, e, no entanto, todos recitando o “Salve Rainha” muitas vezes, certos de estarem tomados pela luxúria desenfreada de algum Baile dos Cafajestes que viram escondidos na revista “Escândalo”. Em casa, pão e vinho sobre a mesa, a autoridade paterna assumia o cálix bento, e, só depois que purificasse o menino com um “Deus te abençoe”, o sono estava autorizado. O mundo era um quarto escuro com um jacaré escondido debaixo da cama e uma revista do Carlos Zéfiro sob o travesseiro. De manhã na escola, o colega mais velho, de uma turma adiantada nos segredos da vida, apertaria o mamilo do menino na crença de que um endurecimento sebáceo por ali indicaria um masturbador contumaz na noite anterior. Era proibido ter espinhas. Foi no tempo do vício solitário sem a riqueza de estímulos da internet. Havia apenas umas mulheres nuas, todas sem pelos genitais, andando pelos milharais nórdicos de uma revista dinamarquesa chamada “Saúde e Nudismo”.
Era a mais pura ignorância, a vontade de entender por que rangia ritmada a cama de papai com mamãe, e afinal o que queria dizer aquela palavra “bacanal” toda quarta-feira de cinzas na capa da revista “Maquis”, quase sempre titulando a foto de uma mulher vestida de odalisca, cheirando o lenço que o homem de sarongue lhe oferecia.
A empregada da casa do menino cantava o samba alegre com a triste história da pobre infeliz, “parecia uma tocha humana rolando pela ribanceira”, porque teve vergonha de ser mãe solteira. Tempo das trevas, do silêncio, da oração de Júlio Louzada, das meninas oferecidas, das que ficariam para titia, dos efeminados no troca-troca e da imensa culpa que a todos pesava sobre os ombros.
Homem que era homem não usava camisa vermelha. Mulher sentava de perna fechada. No cinema os nenéns nasciam depois de um beijo na boca. Mas agora fala baixo, que sua mãe está chegando.
Anilza Leoni, a vedete morta semana passada, fazia a sua parte no descaminho a que se achavam fadadas as famílias suburbanas. Ela enchia a tela da televisão com um par de coxas, que o Zé Trindade chamava de “mocotó”, e ia daqui até o outro canto da página. O garoto na sala percebia, sem que ninguém lhe tivesse dado qualquer pista, que o demo estava se manifestando na tepidez daqueles nacos de carne. Ele podia sentir a temperatura da pele entre as coxas, ouvir a respiração arfante da vedete que estava no palcoauditório da TV Rio, Canal 13, no outro lado da cidade — e isso era bom, porque mostrava que havia mais jogo para quando acabassem as figurinhas do bafo-bafo. E isso era religiosamente mau, porque deixava no ar que o pecado se instalara em sua alma infantil regada ao sangue de Cristo e xarope de groselha.
Foi no tempo do hímen complacente, do lençol sujo de sangue, do “Elvira, a morta virgem”, da garçonnière e da Aída Curi morta durante a curra. Deus não era dez, porque não estava para brincadeiras. Jogava sozinho. Contra todos.
As trevas pulsavam nas mãos do menino, da mesma maneira que o Caveira assustava a vida do Jerônimo no seriado da Rádio Nacional, e a Fera da Penha se vingava do abandono do amante queimando-lhe viva a filha num terreno baldio do subúrbio. Era tudo pecado, tudo às escondidas. Mais um pouco de ousadia na brincadeira do pera-uva-ou-maçã e seria a sua vez de arder, junto com todas as estampas Eucalol, na grande fogueira do inferno.
Ele era o Olho e estava vendo. À noite, contrita, a família reunida colocava um copo d’água sobre o rádio, e todos ouviam as preces de Alziro Zarur conclamando para doações à Legião da Boa Vontade. O dinheiro ia para a sopa que ele servia aos pobres, uma espécie de abatimento nas dívidas que todos tinham para com o Senhor.
Era no meio disso tudo que o menino via as coxas monumentais de Anilza Leoni, e ele imediatamente achava-se incurso em algum dos sete pecados capitais. Talvez um adúltero, talvez um blasfemo, talvez um promíscuo, e todas aquelas palavras que ele ouvia como palavrões, mas não tinha a mínima idéia do que tratavam.
Corria à igreja, onde se prostrava ajoelhado diante do pai, do filho e do espírito santo, todos representados pelo padre de fala italiana por trás da tramela do confesssionário — e ele abria o jogo ao representante de Deus sobre o que lhe parecia ter sido a perda da pureza.
Sim, ontem à noite, durante o pique-esconde, trancara-se com a filha da vizinha num armário do quarto e, quando, sem querer, passou a mão nos pelos do braço dela, sentiu que os pelos do seu próprio corpo tinham sido contaminados por algum tipo de radiação, alguma coisa tão boa e que não anunciava na televisão, não estava no catálogo do Falcão Negro, nunca tinha sido perguntada ao Dida na “Revista do Esporte”, uma delícia tamanha que só podia estar nos dez pecados da lei de Deus.
Sim, Anilza Leoni levantara os braços durante o programa na televisão e dera a impressão ao menino de que deixava propositadamente à mostra a cama convidativa dos sovacos, e do seu distante subúrbio ele conseguira ouvi-los gritando “Vem, meu garoto, e vamos gritar ‘oba’ juntos”.
Foi há muito tempo, quando se morria de medo da gonorreia e de mastigar a hóstia consagrada no dia da primeira comunhão. Jesus, pregado na cruz de todos os quartos, estava de olho e dava o exemplo. O sentido da vida era o sofrimento. As meninas usavam combinação e, aos 15 anos, o pai levava o filho para se iniciar com as prostitutas do Mangue. Escondido na gaveta de uma tia solteirona, o livro “Nossa vida sexual”, de Fritz Khan, descrevia a perda da virgindade com termos de medicina legal.
Tudo era pecado nessa história ao sul do Equador, menos o “oba!” feliz de Anilza Leoni, a vedete morta na semana passada. Que ela descanse em paz na santa glória abençoada de seu espartilho."

Joaquim Ferreira dos Santos

Nenhum comentário: